Querida avó,
Este domingo é dia de Eleições Legislativas.
Lembro-me de crescer a ouvir o meu avô Alberto falar da importância do voto.
O avô Alberto era analfabeto. No entanto, sabia muito sobre a importância da democracia e do valor do voto de cada um.
Cresci a ouvir as histórias da vida real que o avô Alberto me contava: sobre os papéis que apanhava nas ruas, de madrugada, e que os escondia para serem lidos pelos meus pais. Depois de lidos, eram queimados pelas chamas do fogão a lenha que, na cozinha, estava sempre aceso; sobre a censura; sobre os assuntos e ajuntamentos proibidos; sobre a falta de condições para os trabalhadores; sobre a PIDE; sobre os “bufos”, e muito mais.
O avô Alberto era analfabeto, mas sabia muito bem o que era trabalhar de sol a sol e, ainda assim, o dinheiro não chegar para nada. Sabia que os direitos não eram iguais para todos. Sabia a dificuldade que existia no acesso à saúde, ao ensino e muito mais.
O avô Alberto exibia com orgulho o seu cartão de eleitor. Só começou a votar em 1945, o ano em que pela primeira vez os analfabetos puderam votar. Às mulheres só foi permitido votar nas primeiras eleições pós-25 de Abril, em 1975.
Posso não ter herdado do avô Alberto a mesma cor e convicções políticas. No entanto, herdei a responsabilidade de ir votar.
Todos damos a democracia e a liberdade como direitos garantidos. Mas ainda há uma ano à invasão do Capitólio nos EUA, já para não falar do Afeganistão…
A democracia e a liberdade podem ser direitos consagrados na Constituição da República, mas a vida dá muitas voltas.
Faz-me muita confusão ver a realidade partilhada em certas peças jornalísticas na televisão. Nas eleições anteriores, vi um jornalista que andava com fotos de candidatos presidenciais na mão, a perguntar às pessoas se sabiam quem eram. Muitas pessoas não sabiam… mesmo com tantos cartazes nas cidades e debates na tv. Provavelmente, essas pessoas sabem os nomes dos nomeados dos “reality shows”, mas não lhes interessa quem nos governa.
Recordo-me de uma peça jornalística, no dia do funeral do Mário Soares, em que a jornalista perguntava a um jovem de vinte e tal anos: “Que importância teve Mário Soares para a Liberdade em Portugal”? Ao que o jovem respondeu muito orgulhoso: “Bem, não sei ao certo. Só sei que era um velhote do PS!”
Não podemos cruzar os braços!
Não te esqueças de manter as distâncias, levar a tua caneta e voltar logo para casa.
Segunda as tão faladas sondagens os resultados finais estão muito difíceis de prever.
Vota em consciência.
Bjs
Querido neto,
Devo ser das poucas pessoas que ainda se lembram—nitidamente!—de ir a um lugar onde estava muita gente a falar alto e a bater palmas e alguns a gritarem por um único nome: Norton de Matos.
Nessa altura eu tinha 5 anos e era criada pelo meu Tio Joaquim, republicano de gema, que me estava sempre a mostrar as cicatrizes que tinha na perna por ter estado na Rotunda a lutar pela República no dia 5 de Outubro de 1910.
O meu tio entrou em todas as conspirações para deitar abaixo o Estado Novo. E levava-me sempre com ele. Chegava ao café – a Leitaria Persa, no Rossio que hoje é uma loja de artesanato – e era onde se reuniam os conspiradores. Largava-me em cima do balcão e eu adorava lá estar porque todos os que entravam se metiam comigo – uma criança no meio daqueles homens todos…– e eu empanturrava-me de chocolates que eles me davam.
Claro que todas as conspirações falhavam.
Mas naquela altura em que ou comecei a ouvir o nome de Norton de Matos, todos estavam convencidos que as eleições iam deitar abaixo o Estado Novo e eleger este general como presidente. Então o meu tio deixou de ir à Leitaria Persa e andava comigo em comícios (nunca me lembro de ter ouvido tal palavra nesse tempo) e contava-me tudo sobre aquele senhor, o que era, o que fazia, por onde tinha andado, etc… Um dia até me mostrou uma fotografia dele, assinada por ele para o meu tio. Ainda a tenho cá em casa.
Mas depois acabou-se tudo. O Salazar intrometia–se em todos os assuntos, proibia tudo—e ele acabou por desistir.
A minha primeira experiência eleitoral acabou aí.
O meu tio voltou às conspirações na Leitaria Persa e eu com ele.
Passados dez anos, andava eu no então 5º ano do liceu Filipa de Lencastre e já percebia bem o que se passava — surgiu outro general nas nossas vidas: Humberto Delgado.
Devo dizer que o meu tio não alinhou logo às primeiras. Lembro-me de ele me dizer que era um general da confiança do regime, ná, aquele não o levava. E enfiou-se—e eu com ele—na campanha do outro candidato, Arlindo Vicente. Para mim era óptimo porque o senhor morava mesmo ao pé do meu liceu e eu não falhava a nada….
Até que toda a gente contra o Estado Novo se uniu em volta da candidatura de Humberto Delgado.
E lá voltei eu aos comícios e mais comícios – conservo hoje ainda uma fotografia num deles, no Centro Republicano Fernão Boto Machado a ouvir o Capitão Varela Gomes a falar e eu a bater palmas ao lado da Vera Lagoa—nessa altura ainda Maria Armanda Falcão.
Foi aqui que participei efetivamente pela primeira vez numa campanha eleitoral. Não faltava a comícios, distribuía propaganda, tentava levar outras pessoas.
E depois foi o que foi. A maior fraude eleitoral de que há memória.
Considerei-me vacinada. Ninguém nunca iria conseguir nada.
Claro que foi havendo eleições fantoches, o candidato do regime, sempre. Eu nem saía de casa.
Até que veio o 25 de Abril—e tudo mudou. Nunca me hei-de esquecer das filas e filas para se ir votar nas primeiras eleições livres.
E, claro, a partir daí, nunca deixei de votar—e ainda hoje aceito muito mal quem se abstém. Não gosta de nenhum candidato? Não interessa, vai lá e vota em branco, isso significa “quero participar nas não quero nenhum destes.” É uma presença. Não é virar as costas e assobiar para o ar.
E lá temos tido eleições, com gente boa, com gente má, com gente assim – assim, mas eleições democráticas.
A partir daqui aquelas eleições de que me lembro têm apenas—e já é muito—um valor afetivo: as eleições presidenciais de 1987, onde a minha filha votou pela primeira vez; as autárquicas de 1989, onde o meu filho votou pela primeira vez; e as legislativas de 2019, onde o meu neto votou pela primeira vez.
Nunca os influenciei em nada.
Nunca lhes perguntei em quem eles votam
Mas tenho a certeza de que votam bem.
Assim como tu!
No domingo ligo-te para falarmos sobre as eleições, nem que seja de madrugada!
Beijos.
O Diário de uma Avó e de um Neto é um projeto do site Retratos Contados
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