Querida avó,
Então, passados 19 anos, o Sporting lá voltou a ter nas mãos o maior troféu do futebol nacional. Rúben Amorim, atual treinador do Sporting, deu os primeiros passos como jogador no Casa Pia.
Por falar em Casa Pia, a última vez que o Sporting tinha sido campeão o caso Casa Pia ainda não tinha rebentado. Durão Barroso tinha acabado de chegar a primeiro-ministro… Os sportinguistas que viram o seu clube ser pela primeira vez campeão já podem votar e tirar a carta de condução. Pena que, a maioria, não sabe o que foi o caso Casa Pia, nem quem é o Durão Barroso.
Esteja onde estiver, quem está felicíssima é a Maria José Valério.
Como diria a Teresa Guilherme: “Isso agora não interessa nada!”
Não me apetece falar de futebol nem dos Pastorinhos.
Hoje, para além de ser Dia da Nossa Senhora de Fátima, é também quinta-feira da Espiga.
Dia em que as pessoas costumavam ir ao campo colher um ramo de espiga.
Lembro-me tão bem de ser pequeno e ir com os meus avós apanhar o que a natureza nos dava para compor o Ramo da Espiga.
Tão diferente daquilo que em Lisboa vemos neste dia, com vendedoras de Ramos de Espiga já feitos.
Dia da espiga ou Quinta-feira da espiga é uma celebração portuguesa que ocorre no dia da Quinta-feira da Ascensão. Por isso, tal como outras datas, não acontece num dia fixo do calendário.
Quando era pequeno, vivia num local onde o dia de hoje era feriado, tal como acontece em muitos concelhos de Portugal.
Como tal, o dia começava com um passeio matinal pelo campo, onde colhíamos espigas de vários cereais, flores campestres e raminhos de oliveira para formar um ramo. Esses campos hoje estão repletos de casas.
Segundo a tradição, que aprendi com os meus avós, o ramo deve ser colocado por detrás da porta de entrada, e só deve ser substituído por um novo no dia da espiga do ano seguinte.
No passado, Dia da Espiga era também o “Dia da Hora” e considerado “o dia mais santo do ano”, um dia em que não se devia trabalhar. Era chamado o dia da hora porque havia uma hora, o meio-dia, em que tudo parava, “as águas dos ribeiros não correm, o leite não coalha, o pão não leveda e as folhas se cruzam”. Era nessa hora que se colhiam as plantas para fazer o ramo da espiga e também se colhiam as ervas medicinais. Em dias de trovoadas, queimava-se um pouco da espiga no fogo da lareira para afastar os raios.
Pelo menos eram essas as lendas que os meus avós me contavam.
Estes rituais pagãos costumavam observar-se pelo meio da Primavera, mais ou menos no atual mês de Maio, e sempre tiveram grande implementação popular.
No Dia da Espiga as pessoas iam pelos prados em busca dos vários constituintes do Ramo da Espiga. No entanto, com a industrialização e a crescente migração para as grandes cidades, começou a haver cada vez mais dificuldade em cumprir este preceito.
A isto se juntou em 1952 o fim deste Feriado Nacional. Obrigada a abdicar de alguns feriados, a Igreja Católica aceitou “sacrificar” a Quinta Feira da Ascensão.
Foi assim que também nasceu o negócio, muito visível em Lisboa, do Dia da Espiga. Da região saloia, especialmente de Mafra (onde se mantém o feriado), pessoas do campo vão para a cidade vender estes ramos a quem trabalha ou vive na capital.
Em muitos mercados da cidade também se continua a ver as vendedoras locais com estes ramos.
Um símbolo de prosperidade e de sorte.
Para quem não sabe o que significa, cada planta que o Ramo de Espiga deve ter, aqui fica a explicação:
As espigas devem ser sempre em número ímpar, e são a parte mais importante do ramo. Podem ser de trigo, centeio, aveia, ou qualquer outro cereal.
Representam o pão, como a base do sustento da família, e a fecundidade.
A papoila, com a sua cor vibrante e quente, significa neste ramo o amor e a vida. Sendo a parte mais garrida do ramo acaba por ser também aquele que mais cedo murcha com o passar dos dias.
O malmequer: simboliza a riqueza, e os bens terrenos. Isto porque o branco simboliza a prata, e o amarelo simboliza o ouro.
A oliveira acaba por ter um duplo significado. Em parte significa a Paz (sendo que é um dos símbolos da Paz desde a Antiguidade), mas ao mesmo tempo é o símbolo da Luz, visto que do seu óleo se enchiam as lâmpadas que alumiavam as casas, representando igualmente a sabedoria divina.
Tal como a oliveira, o alecrim é outra presença constante nos países mediterrânicos. Com o seu cheiro forte e duradouro, é uma planta que resiste a quase tudo, simbolizando por isso a força e a resistência.
A representação do vinho, tão importante para a nossa cultura e tradição, faz-se naturalmente com a videira, ligado também à alegria.
E pronto, querida avó, estas são as plantas principais do Ramo da Espiga, sendo que tradicionalmente qualquer outra planta que surja durante a caminhada do Dia da Espiga pode ser adicionada para embelezar. No entanto, reza a tradição que não deve faltar nenhuma das acima referidas, para não faltar o que ela representa.
E tu, avó? Que tradições tens neste dia?
Sei que tens uma espiga em casa que em nada tem a ver com o Dia da Espiga.
Conta-me tudo. Não me escondas nada!
Que este seja um ano próspero para todos. Que acima de tudo não nos falte saúde.
Já levastes a segunda dose da vacina? Que tal?
Ontem fiz a minha primeira zaragatoa. Está tudo bem.
Bjs
Querido neto,
Começando pelo fim, já levei a segunda dose da vacina.
Como sabes, apesar de duplamente vacinada, vou continuar de máscara e muito recatada (até fiz um verso).
É verdade! Passados 19 anos, o Sporting lá ganhou o campeonato. Tu viste as imagens nos telejornais?
Inacreditável! Milhares de sportinguistas, quase ao colo uns dos outros, por causa do jogo. Apesar dos adeptos não poderem entrar no estádio… mas isso que importa? Milhares de pessoas a gritar, a beber, em euforia, e ainda fazem frente à Polícia… Vergonha alheia!
Nem me apetece falar mais do assunto. Vamos ao que realmente importa.
Meu Deus, as coisas que eu aprendi hoje no teu texto… Como estás sempre a dizer, os novos também ensinam muito aos mais velhos.
Nunca me lembro de não ter tido um ramo de espiga cá em casa.
Há três anos, quando parti duas vértebras e não me pude mexer durante uma data de tempo, o então presidente da minha Junta de Freguesia veio trazê-lo a minha casa. Fiquei a dever-lhe essa.
Mas tens razão. A espiga de trigo que ainda hoje conservo aqui na sala não tem rigorosamente nada a ver com o Dia da Espiga. Mas garanto-te que é a espiga mais linda do mundo.
Estávamos em Agosto de 1988. Nesse mês havia sempre um grande Salão do Livro na cidade de São Paulo, no Brasil, a que eu nunca faltava. Demorava muitos dias, havia uma série de encontros e colóquios, passávamos sempre lá um tempo extraordinário—sem esquecer um pezinho de dança nos forrós, que duravam até de manhã.
Convém recordar que se estava ainda num tempo pré-histórico, sem net nem telemóveis.
Uma noite eu e vários amigos (o Baptista Bastos, o Vítor Branco, da Caminho, o António Torrado e outros) tínhamos saído de um forró e estávamos a cear numa cantina, das muitas que havia em São Paulo.
E de repente fez-se um terrível silêncio. O programa da televisão tinha sido interrompido para um jornalista anunciar que Lisboa estava a arder. Ele ainda não sabia bem o que tinha acontecido, mas uma coisa era certa: o centro histórico de Lisboa estava todo em chamas. (Ainda hoje me lembro dessa frase).
Ninguém sabia mais nada, o dono da cantina telefonava para colegas e ninguém sabia mais do que isso.
Eu levantei-me da mesa, disse “fiquem vocês, se quiserem, eu vou já tomar um táxi, apanho a minha mala no hotel e sigo logo para o aeroporto apanhar o primeiro avião que levantar voo.”
Foi um coro de “estás maluca? Sozinha, a pé, pelas ruas de São Paulo a esta hora da madrugada?! Fica sossegada, nós também não demoramos muito, e amanhã apanhamos todos o avião”.
Mas eu nem pensar. “Fiquem, fiquem se quiserem, mas eu vou-me já embora.”
E fui. Táxis, nem vê-los.
Até que, a uma dada altura, eu vejo um negro, enorme, muito sujo, perdido de bêbedo, quase a cair no passeio, a avançar para mim do fundo da rua vazia.
Pensei “pronto, vai ser o último dia da minha vida, não devia ter saído da cantina”, mas já não podia fazer nada, o negro continuava a avançar na minha direção, e agora chamava por mim.
“Moça! Ó Moça!”
E eu, “é agora, não tenho fuga possível”— e logo os braços dele a agarrarem-me com força.
Reparo que chora baba e ranho (e não é metáfora…), e que tem uma espiga de trigo na mão. Fica para ali a abraçar-me, “ó moça, ó moça!”, a chorar, até que de repente me entrega a espiga.
“Ó moça, tome, isto é para você, porque eu estou muito triste porque Lisboa está a arder…”
E foi agarrado a mim até ao meu hotel, sempre a chorar, e a repetir “Lisboa está a arder”…
Levei a espiga na mão para o avião, desembarquei em Lisboa com ela na mão — e há 33 anos que ela ali está, a olhar para mim.
Que bom que o resultado da tua zaragatoa foi negativo.
Protege-te sempre. Escuta a tua avó!
Beijos
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