Um frigorífico é um lugar pouco nobre para se guardar a memória de um avô. Mas é ali, no meio dos horários das atividades semanais, das fotografias da escola dos miúdos e dos recuerdos foleiros das viagens, onde gosto de o ter. Trata-se de uma imagem embraçosamente 80’s: eu de chumaços volumosos e flor na cabeça, ele num raro dia em mangas de camisa. Mas a indumentária pouco importa para o caso: eu abraçava-o e ele sorria, embevecido, suponho que apanhados numa festa de família qualquer.
É pois dali, da porta do frigorífico para o fogão, que costumamos falar os dois quase todos os dias. Enquanto faço refogados, comidas de tacho, grandes tabuleiros de forno para esta família numerosa de muito alimento, ele olha-me por cima do ombro e vai-me dando dicas e conselhos. Então como passaste o dia, filha? E eu vou desfiando as horas passadas, arrumando-as em caixinhas, à medida que lhe vou contando as últimas. Falo-lhe das histórias e das tiradas dos bisnetos, conto-lhe as coisas boas que nos vão acontecendo, falo-lhe das incertezas desta profissão que escolhi. Parece que o estou a imaginar a levar a mão ossuda de veias salientes à cabeça, quando lhe digo que as pessoas deixaram de comprar jornais diários em papel – coisa que ele lia com devoção religiosa. A sério, não me digas outra!? (Quando acabou a Capital, passou para o Público, e todos os santos dias, praticamente até ao fim da sua vida, lia-o de fio a pavio e fazia as palavras cruzadas). Ele alerta-me que a cebola está a ficar escura, refila por o feijão vir de uma lata, e eu explico-lhe que as coisas mudaram muito nestes anos desde que ele morreu – agora há redes sociais onde as pessoas mostram as suas vidas todas, falam por mensagens e em aplicações e já pouco se sentam à conversa nas mesas dos cafés, as mentiras circulam como se fossem verdades e ninguém se importa muito com isso.
Nos últimos tempos, já se sabe, o nosso tema tem andado pelo coronavírus. Ele puxa da sabedoria enciclopédica e atira-me números da gripe espanhola, que deve ter lido nos muitos livros de história que lia e sublinhava – hobby curioso para um contabilista – e recorda-me que, de tempos a tempos, uma pandemia assola o mundo. Sempre foi assim e assim será, por muito que o homem pense que domina a natureza, a natureza leva sempre a melhor. E assegura-me que, depois de passarem as ditas, nunca mais nada é como dantes. Eu digo-lhe que está a exagerar, que ele não está a par da ciência que agora é muito mais eficiente, que isto daqui até vir um tratamento eficaz é um tirinho, até à vacina outro, e tudo voltará rapidamente ao normal. Ele não faz caso e insiste: vai mudar muito, sim. Mas sabes filha, nem vale a pena pensar muito nisso, é aceitar o que vier e seguir viagem. Chorar sobre as desgraças passadas é a maneira mais segura de atrair outras, dizia-me, citando Shakespeare como gostava de fazer, mesmo quando a frase era sua e ele a inventava no momento.
Hoje de manhã voltámos a falar. Cheguei-me ao frigorífico e recordei-lhe que esta Páscoa era diferente: o seu bisneto fazia 14 anos, mas não nos juntaríamos todos – cerca de 40 – como sempre fazemos. Contei-lhe que, desta vez, só estava ao fogão a preparar um arroz. Este ano não há cabrito no forno a lenha, o perú recheado (que era sempre ele a trinchar) chegaria já preparado. Em breve o meu pai, o seu filho mais velho, bateria à porta para o trazer – apesar de confinado e em isolamento, fez questão de fazer o almoço de Páscoa para os netos, como sempre fez desde que assumiu o lugar de cozinheiro para toda a enorme família nos dias festivos, já lá vão quase 40 anos. Desde que me tenho que todas as festas de família são passadas em conjunto. O que não tem remédio, remediado está: tem de ser assim, avô, tento dizer-lhe, mas na verdade para me convencer e consolar a mim.
Chega o meu pai, orgulhoso, com o seu delicioso perú, e ainda traz o brinde das batatas assadas. Uma alegria! Agradecemos muito, dizemos adeus ao longe. Tudo demasiado rápido. Sentamos-nos à mesa para comer, mas custa-me um bocadinho a engolir. Depois do almoço, juntamos a família toda para festejar o aniversário possível. Cantamos os parabéns através do Zoom, em cada quadradinho uma casa, e tentamos acertar o passo apesar do “delay” das redes. Como de costume, o tio Artur desafina o Alecrim aos Molhos em vez dos Parabéns. Mas desta vez a tia Ana não entornou vinho tinto na mesa, logo seguido de uma bênção e saudinha com toque rápido na cabeça. A minha sogra não me obrigou a repetir mais uma fatia do seu delicioso folar de Olhão, que nos mandou. O tio Rui não contou histórias dos putos que tratou. A tia São não falou do seu Sporting. A minha sobrinha e afilhada Joana não teve direito ao um mimo especial. O aniversariante teenager não teve os abraços e os calduços dos primos mais velhos.
Mas, apesar de tudo, estivemos juntos. Mais precisamente, juntos durante 8 minutos de uma videochamada de qualidade média. Fim de festa, despedidas, aguentem forte, fecham-se as janelas e cada um volta à sua clausura solitária.
Regresso à cozinha com os restos do bolo de chocolate, tento disfarçar a tristeza estampada na minha cara com esta Páscoa e aniversário tão agridoces, antes de olhar para o frigorífico. Já estava à espera da tirada dele. Não fiques triste, querida. Guardava o “querida” só para os momentos importantes. Durante quase um ano, a tua avó só viu o filho bebé pela janela, sem se poder aproximar dele – já sabes a história, aquelas duas cavernas enormes nos pulmões, malvada tuberculose. Vocês estiveram agora todos a ver-se pelas janelas ao mesmo tempo, podem fazê-lo sempre que quiserem, ninguém está doente… Sem estas novas tecnologias seria muito pior. Já viste, filha, a sorte que tens?