1. São já dezenas de mortos nas ruas. E não tenho nenhuma dúvida que serão muitos, muitos mais. Nas ruas e fora delas. Porque os criminosos de hoje, na Birmânia, agora Myanmar, são os mesmos com as mãos sujas de sangue de um povo que há décadas oprimem, reprimem, torturam, matam. Serão muito mais as vítimas, que lutam pela liberdade e pela democracia, após os militares, sempre no poder pela força das armas, terem decapitado, a 1 de fevereiro, o poder legitimado pela força do voto nas eleições 2015 e confirmado nas eleições de novembro último.
Os criminosos de hoje,
na Birmânia, agora Myanmar, são os mesmos com as mãos sujas de sangue de um povo que há décadas oprimem, reprimem, torturam, matam
Recorde-se que nestas eleições a Liga Nacional para a Democracia (LND), criada e liderada por Aung San Suu Ky, teve 83% dos sufrágios. Uma estrondosa vitória, com a paralela estrondosa derrota do partido criado pela ditadura há uma dúzia de anos, o USDP. Então, quando o novo Parlamento ia entrar em funções, a 1 de fevereiro como se disse, os militares perpetraram um novo golpe de Estado: “anularam” os resultados eleitorais, com mentirosas acusações de “irregularidades” – negadas pelos observadores internacionais -, prenderam Aung San Suu Ky, outros dirigentes e militantes, incluindo Presidente da República e governo, desencadearam a repressão e violência.
2. Sublinhe-se, antes de mais, que na “democracia disciplinada”, como lhes chamavam, vigente no país desde as eleições de 2015, com base na Constituição imposta pelos militares, estes: a) “nomeiam” 25% dos membros do Parlamento, b) designam três ministros, dois deles o da Defesa e do Interior, o que significa controlarem diretamente todas as forças armadas e de segurança; c) têm direito de veto sobre as decisões mais importantes…
Democracia, isto? E para mudar a Constituição é preciso, nos seus termos, uma maioria de 75%. Ora, como os militares nomeiam 25% dos deputados e têm direito de veto… Mas não lhes “chega”, não basta para o seu propósito de manterem por inteiro a tirania e a corrupção imperantes. Num país com um povo fantástico e aquela mulher, a que chamam “mãe”, Suu Kyi, absolutamente extraordinária e com uma história única. O que me toca muito.
Mesmo na sua democracia “disciplinada”, os militares nomeavam 25% dos deputados, três ministros, incluindo o das Forças Armadas e das polícias, e tinham “direito de veto”
3. Houve uma época em que era muito comum o entrevistador questionar o entrevistado sobre os seus “heróis” e as suas “heroínas”. Nas decerto centenas de entrevistas que fiz ao longo do tempo julgo nunca ter feito essa pergunta, exatamente por se ter tornado banal. Mas como entrevistado, algumas vezes a ela respondi. E então, como heróis e heroínas para mim, contemporâneos, apresentava dois, em primeira linha e lado a lado: Nelson Mandela e Aung San Suu Kyi. A certa altura, quando da luta do povo de Timor contra o invasor indonésio, acrescentei-lhes Xanana Gusmão.
Nelson Mandela manteve-se até ao fim igual a si próprio – e por isso naquela minha restrita galeria de “heróis”. Xanana começou a fazer coisas de que não gostei e me foram criando dúvidas, até que dela em definitivo saiu. E pela porta dos fundos: quando o vi entrar sorridente, de mão dada com o ditador “presidente” Teodore Obiang, na cimeira da CPLP em Timor, que vergonhosamente aprovou a entrada na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa da “sua” (de Obiang) Guiné-Equatorial – na qual, além de tudo o resto, nem português se fala…
Então, viva, ficou apenas Suu Kyi. Deposta do seu lugar de minha “heroína”, face à limpeza étnica dos muçulmanos rohingya, por parte das autoridades do país de que era apontada como líder de facto? Claro que me questionei. Mas lá mais para diante respondo à pergunta.
Aung San Suu Kyi é uma mulher e tem uma história absolutamente extraordinárias, únicas, na sua luta pela liberdade e a democracia na Birmânia
4. Aung San Suu Kyi nasceu em Rangum, então capital do país, e sua maior cidade, a 19 de junho de 1945. Filha do general Aung San, líder da luta pela independência do país, de que foi chefe de governo: um símbolo e uma figura lendária, considerado o fundador da Birmânia “moderna. Assassinado quando tinha só dois anos Suu Kyi, que 37 anos mais tarde publicaria uma biografia do pai. Suu Kyi estudou em Rangum, também na Índia, onde a mãe foi embaixadora, e por fim na Inglaterra, em Oxford. Aqui conheceu o que viria a ser seu marido, Michael Aris, especialista em civilização tibetana, com o qual teve dois filhos.
Na India – onde o seu marido, à época, ensinava – estaria de novo em 1986, após um ano no Japão com uma bolsa da Universidade de Kyoto. Ambos, porém, voltam depois para Londres, onde ela devia terminar o doutoramento em literatura birmanesa. Em final de março de 1988, porém, sua mãe sofre um grave ataque cerebral, e Suu Kyi regressa à pátria. E é nesse ano que explode uma revolta popular contra o regime ditatorial encabeçado por Ne Win, o general há 26 anos à frente do poder e do partido único – nacionalista, dito “socialista” e “não alinhado”.
Ne Win resigna – embora, na sombra, continue ativo – sendo substituído por uma Junta Militar. A revolta, conhecida por 8888, é esmagada de forma sangrenta, como já acontecera em 1974 com outra do género, havendo um elevadíssimo número de assassinados. Só na última manifestação, no dia 8 de agosto (8/8/88…) calcula-se terem sido mortas mais de cinco mil pessoas. Não obstante, pouco depois é constituído um novo partido, a Liga Nacional pela Democracia (LND), tendo Suu Kyi, que entretanto se empenhara no combate político, como secretária-geral.
Frágil, serena, flores no cabelo, um sorriso doce e por vezes enigmático, é fantástica a coragem da que chamam “mãe” e passou já 15 anos presa
5. A partir daí tudo muda na sua vida – e, de certa forma, na Birmânia. A casa da família Aung passa a ser uma espécie de sede e centro da esperança e do combate pela democracia. E Suu Kyi, cada vez mais popular, começa a percorrer o país, numa exemplar e muito corajosa luta pela liberdade. Luta, porém, sempre não violenta: budista ela própria, como a imensa maioria dos birmaneses, Gandhi é a sua grande referência, admirando também o Dalai Lama. Calcula-se que entre março e julho de 1989 a líder do LND terá feito mais de mil (mil!) comícios e o que entre nós se chamariam “sessões de esclarecimento”. E, não obstante as constantes e graves provocações e perseguições, com cada vez com mais entusiasmados participantes, rendidos à sua figura, ao seu ideal, à esperança que corporizava – frágil, serena, flores no cabelo, um sorriso doce e por vezes enigmático.
Com a Junta Militar surpreendida e amedrontada face a tal situação, ainda em 1989 é presa pela primeira vez, como são presos numerosos dirigentes e militantes do seu partido. A Junta anuncia, porém, que fará eleições em 1990, após quase 30 anos sem elas. E as eleições, de facto, realizam-se, mas com Suu Kyi, que entretanto faz uma greve de fome, continuando presa e sendo impedida de se candidatar. Decerto confiantes nos seus resultados, os militares permitem a fiscalização das urnas. E, espantoso, Suu Kyi, quer dizer: o LND, seu partido, elege 392 dos 485 deputados!
E depois? Como agora voltaram a fazer, os tirânicos generais não reconhecem os resultados das eleições por eles próprios organizadas. Tudo fica ainda pior, milhares de cidadãos são perseguidos, presos, torturados, mortos. Alguns dos que conseguem fugir constituem um governo no exílio. The Lady, como também lhe chamam (título do filme franco-britânico sobre a sua vida, de Luc Besançon, estreado em 2011) continua em prisão domiciliária, afastada do marido e dos filhos, alvo de insultos, ataques e ameaças de toda a ordem.
6. A projeção e o prestígio mundial de Suu Kyi tornam-se cada vez maiores. Ainda em 1990 o Parlamento Europeu distingue-a com o Prémio Sakharov para a Liberdade do Pensamento. E, em 1991, suprema consagração, é-lhe atribuído o Prémio Nobel da Paz, pela primeira vez distinguindo alguém que está preso. Não o pôde ir receber – foram o marido e os filhos, a viver em Inglaterra – continuou presa e sempre ameaçada. Teme-se inclusive pela sua vida. Há um grande movimento internacional a favor da sua libertação, mas os algozes não cedem.
Suu Kyi, presa em Rangum, não foi a Londres ‘despedir-se’ do marido, que morreu de cancro, por saber que os militares lhe permitiam sair para a impedir de regressar à sua pátria
Assim, só quase seis anos mais tarde, em julho de 1995, é finalmente libertada. Pode falar com jornalistas: e fala sem palavras de rancor, ódio ou vingança. Continua a ser uma mulher serena, de uma beleza tranquila e misteriosa – “le jasmin ou la lune” (“o jasmim ou a lua”) se intitula um dos livros que lhe é dedicado, em França.
Nessa altura é-lhe permitida a visita do marido, Michael. Será a última vez, pois a Junta não o deixa voltar a Rangum. Em ‘compensação’ permitia-lhe a ela sair. Permitiu-o, ou até o incentivou, quando ao marido foi diagnosticado um cancro. Terminal. Mas Suu Kyi, num derradeiro gesto de enorme grandeza e sacrifício, não foi a Londres “despedir-se” de Michael, que a apoiou nessa decisão. Porque ambos sabiam que os tiranos desejavam era vê-la fora do país, para a não deixarem regressar. E Suu Kyi, tendo que dolorosamente optar, optou por não abandonar a sua luta e o povo que nela confiava. continuou em prisão domiciliária até novembro de 2010, num total de cerca de 15 anos – tornando-se um símbolo universal de combate, sempre pacífico, pela liberdade e pelos Direitos Humanos.
7. Em relativa liberdade, a partir de finais de 2010, Suu Kyi continua a dedicar-se por inteiro, à frente da LND e no seu estilo inconfundível, ao combate pela democracia no seu país. Com os militares a propor “diálogo”, visando alegadamente preparar um caminho para ela, com novas eleições. Nesse “diálogo” com os algozes, em posições de completa desigualdade, sempre atacada e armadilhada, tendo necessariamente de fazer transigências e “engolir sapos” para conseguir o possível, Suu Kyi de certeza também sofreu muito, embora de forma diferente. E a Junta, que tanto a temia, para de novo a impedir ser candidata nas eleições, poder chegar a Presidente, liderar ou integrar um Governo, decretou essa impossibilidade para quem tivesse familiares estrangeiros – como era, claro, o seu caso…
Só em 2015 houve, enfim, eleições. E a ânsia de liberdade dos birmaneses, a imensa popularidade, o inigualável prestígio de Suu Kyi, fez com que de novo a sua LND esmagadoramente as ganhasse, com cerca de 80% dos votos. Impedida de ocupar qualquer cargo na hierarquia do Estado, ficou como “conselheira” – mas sendo considerada a nº 1, de facto, do único poder legitimado pelo povo.
E cinco anos depois, em novembro de 2020, lider incontestada e amada do combate por uma Birmânia democrática, como vimos, venceu de novo as eleções com uma maioria esmagadora. Apesar de todas as dificuldades no país, do desgaste de quem governa (embora, limitadamente…), dos problemas e conflitos, de sempre, com as muitíssimas etnias minoritárias, de várias religiões, algumas das quais até têm ou tiveram “exércitos” a lutar pela independência, a autodeterminação ou um Estado federal. Entre essas etnias sendo a mais numerosa e forte a dos rohingyas, muçulmanos, marginalizados em vários países, cerce de um milhão e 300 mil no Estado de Rakhine. Nunca reconhecidos, sem nenhuma espécie de direitos, nem o de propriedade, vítimas de limpeza étnica (como referido em 3.) por parte de militares e polícia, no que a ONU chegou a classificar como genocídio. Que voltou a ocorrer em 2017, levando a que se tenham refugiado no Bengladesh, segundo agências internacionais, cerca de metade deles. O que provocou, como também já referi, severas críticas a Suu Kyi, sendo-lhe inclusive retirado o Prémio Sakharov, e havendo quem defendesse o mesmo quanto ao Nobel da Paz.
Vitória avassaladora, golpe militar, como vimos a tirania, a brutalidade, a repressão hoje de novo assumidas por inteiro: a prisão de Suu Kyi, cidadãos que protestam mortos nas ruas, e muitíssimos mais, não se duvide, a serem ou que serão torturados e assassinados fora delas, como aconteceu das vezes anteriores. Entretanto, The Lady, “a mãe”, já começou a ser julgada. Acusada de ter uns rádios “importados ilegalmente”, proferido declarações “suscetíveis de causar medo ou alarme” e violado o “distanciamento social” imposto pela Covid!… Só isto já dará para até três anos de prisão, decerto, generosamente, domiciliária… Mas claro que haver acusações ainda muito mais graves – sendo certo que a pior é querer a democracia na sua pátria e ter ganho estrondosamente as eleições.
8. Falei, lá atrás, que esta situação me toca muito. Porque de facto tenho uma especial ligação afetiva com a Birmânia, que me levou a seguir quanto possível o que aí se passa e ter Aung San Suu Kyi como “heroína”. Eu conto.
No outono de 1987 estive uma semana na Birmânia, ou Myanmar, onde então era muito difícil entrar, no termo de um mês no Extremo-Oriente. Foi no período final da ditadura de Ne Win, julgo que nessa altura nunca tinha ainda ouvido falar de Suu Kyi. E nunca uma viagem, um país, um povo, me impressionaram tanto. De tal forma que, depois de ter passado pela Índia, estado na Tailândia, na Malásia, na China (além de Macau, claro), praticamente só escrevi sobre a Birmânia. Foram duas reportagens, publicadas em O Jornal (suplemento O Jornal Ilustrado) e reproduzo aqui a entrada de cada uma delas.
A da primeira, que intitulei “Birmânia, entre o ‘susto’ e o deslumbramento”: “Na lendária Terra Dourada, um dos países mais ‘proibidos’ do Oriente e do Mundo, existe hoje uma mistura singular de atraso, socialismo de penúria e religiosidade (budista) levada ao extremo. Impera a corrupção, paira a sombra da repressão, os hotéis são lúgubres, os aviões aterradores. Mas nunca vi, talvez, crianças tão bonitas, as escolas estão cheias, o povo é absolutamente sedutor, a paisagem, a ‘atmosfera’ e os poentes são espantosos. Assim, entre a indignação, o susto e o deslumbramento, sete dias na Birmânia constituem uma experiência e uma aventura inesquecíveis.”
A entrada da segunda, “Uma terra mágica”: “A continuação do percurso num país fabuloso e cheio de contradições: da beleza dramática de Pagan à serenidade inigualável das margens do rio Irrawaddy, do sortilégio dos meninos com flores nas mãos, montados em búfalos, à situação económica terrível e à guerrilha nas montanhas. O socialismo como nome, o budismo como força, a pobreza como sina, a paisagem e o povo como sonho”. Hoje confesso que não sabia então tanto como devia saber sobre a situação política do país. Se soubesse, teria acrescentado: “a tirania como chaga, a liberdade como meta”.
(E, já agora, permita-se-me acrescentar um fragmento de um poema, “Birmânia 1987”, que como imensos outros nunca publiquei: “(…) Poeta portuga a caminho de Pagan apelo/ ao mais profundo do mistério e da memória/ e de outro amarelo assim não me lembro// com este brilho esta chama esta glória/ da luz incandescente da festa de novembro// a festa da lua cheia de um povo/ pobre escravo/ – e nos olhos a rosa da simpatia (…)”.
Impõe-se que o mundo faça tudo o (im)possível para condenar os criminosos, libertar o povo birmanês e a sua lider, que ganhou esmagadoramente as eleições
9. Em conclusão:
a) O que agora se passou e está a passar, mostra bem, creio, que nunca Suu Kyi, por tudo que é e representa, pelo extraordinário exemplo da sua vida e da sua luta, poderia ter qualquer iniciativa ou responsabilidade nos crimes e/ou violações aos Direitos Humanos em relação aos rohingyas. De facto, se os militares, como se mostrou, continua(va)m a ser os principais detentores do poder, exercendo uma verdadeira “tutela” sobre o Governo, “tutela” absoluta em matérias de defesa, segurança, problemas e conflitos étnicos, são eles os exclusivos responsáveis por todas as decisões e ações nesses domínios. Ou seja: Suu Kyi não podia fazer nada para evitar o que aconteceu. O máximo que porventura poderia era pronunciar-se publicamente a esse respeito, o que não terá acontecido. Mas, se o não fez, é minha convicção profunda que tal só se deveu à impossibilidade de ser de outro modo, para evitar males maiores, a pensar no seu país e no seu povo – e por isso continua minha “heroína”…
b) O mundo tem de reagir e opor-se vigorosamente ao que neste momento ocorre na Birmânia, à iminência da repetição de crimes em massa, de tragédias como as já verificadas em situações como a que agora se repete. É certo que António Guterres, como secretário-geral da ONU, e vários governos já tomaram posição a tal respeito. Mas não bastam declarações, impõe-se fazer o (im)possível, desde toda a espécie de bloqueios ao recurso ao Tribunal Penal Internacional, para condenar os criminosos de Rangum, libertar a Birmânia e Aung San Suu Kyi.