A adaptação cinematográfica do romance “Se Esta Rua Falasse”, do norte-americano James Baldwin, ativista negro dos direitos civis falecido em 1987, coleciona prémios. O ponto alto aconteceu com a atribuição do Óscar da Academia de Hollywood para Melhor Atriz Secundária (Regina King). A narrativa, centrada na dolorosa história de amor entre Tish e Fonny no Harlem, em 1970, é também um retrato sofrido, com leves pinceladas de otimismo, da América racista e da desamparada vida das famílias negras desse tempo. Romance e filme ajudaram a reviver e a relançar a obra deste escritor homossexual, mas pouca gente saberá que James Baldwin passou por Portugal em duas breves ocasiões, com um intervalo de 21 anos, a primeira das quais praticamente desconhecida. Em 1964, Baldwin fez escala em Lisboa, em direção ao sul de Espanha. Mas acabaria por perder o avião.
Forçado a prolongar a estadia na capital, recorreu à hospitalidade do amigo Alain Oulman, compositor descendente de judeus que conhecera em Nova Iorque e se tornaria, nessa década, inspirador da revolução no reportório de Amália Rodrigues a partir do álbum Busto, gravado em 1962. Por essa altura, Baldwin era ignorado em Portugal, apesar de já ter uma dezena de romances publicados nos EUA. A família de Oulman, residente no Dafundo, onde o próprio Alain nascera, recebeu-o de braços abertos, tendo ficado rendida à simplicidade e personalidade do escritor.
Com frequência, as noites começavam no restaurante “Oh Lacerda”, o preferido do compositor. Ainda hoje situado no número 36 da Avenida de Berna, diante da Fundação Calouste Gulbenkian, ali amesendaram, em madrugadas épicas, Ary dos Santos, Fernando Tordo e outras figuras das letras e das canções. Décadas mais tarde, Francisco Louçã, Fernando Rosas, Luís Fazenda e Miguel Portas viriam a esboçar, naquelas mesas, a criação do Bloco de Esquerda.
Famoso pelos bifes servidos em “doses pantagruélicas”, cortados no talho ao lado após a escolha dos clientes, o espaço era poiso habitual de oficiais e militares norte-americanos em trânsito, de várias patentes, que rapidamente se tornaram amigos do fundador (nas paredes do restaurante, ainda perduram memórias dessa devoção). Sem saber dizer mais do que “very nice”, Alfredo Lacerda, entretanto falecido, conversava animadamente com os norte-americanos, indo desaguar com eles no Bairro Alto e em Alfama até altas horas. James Baldwin não foi exceção. Mesmo sem falar a mesma língua, Lacerda e o escritor acabaram por criar laços e, quando o casal Oulman regressava a casa, já fatigado das comezainas e andanças, os dois continuavam a vaguear, noite dentro, entre tascas e casas de fado, até ao amanhecer. Nessa altura, tomavam o pequeno-almoço no Cais do Sodré e despediam-se…até à próxima. “James Baldwin adorava essa vida”, comentou-se, pelos anos, entre a família Oulman. “Provavelmente sentia-se livre aqui”.
O escritor regressou a Lisboa, de forma mais formal, em 1985, iniciativa do então conselheiro da Embaixada dos EUA, Stephen Chaplin. Baldwin, que considerava as “perigosas ruas de Harlem” a sua verdadeira universidade, deu conferências na Faculdade de Letras e no Grémio Literário, e, segundo o semanário O Jornal, almoçou com um restrito grupo de personalidades, entre as quais José Cardoso Pires. O norte-americano assumia, contudo, ser pouco dado ao convívio com intelectuais. “Tomam as coisas tão a sério que acabam por dissecá-las”, explicou ao vespertino A Capital. “É gente que não ama a vida nem as mudanças, que são parte integrante da vida”. Em entrevista a Clara Ferreira Alves, no Expresso, James Baldwin, que morreria em 1987 no sul de França, onde vivia, considerava imperioso viajar para “perceber outras maneiras de lidar com o mundo”.
As noites de Lisboa e as tertúlias do restaurante de Alfredo Lacerda, essas, nunca as esqueceu. Haverá, pois, melhor sítio para promover a sessão de lançamento do próximo livro do escritor a ser editado pela Alfaguara em Portugal? Fica a sugestão.