A lei continua a proteger quem não paga e a castigar quem vive, quem paga e quem quer obras feitas. E o resultado é um país inteiro a ver prédios a cair enquanto os processos dormem.
Depois de tantos processos de condomínio — e de tantas reuniões que acabam sempre da mesma forma, com meia dúzia a discutir e os outros a olhar para o telemóvel — já perdi a conta às vezes em que pensei o mesmo: a lei protege quem não paga e castiga quem vive, quem paga e quem quer obras feitas. É triste dizer isto, mas é o que é.
Os diplomas que regulam a propriedade horizontal foram escritos num tempo que já não existe. O velho Código Civil, o Decreto-Lei n.º 268/94… tudo pensado para prédios pequenos, onde todos se conheciam e onde o administrador era aquele vizinho que fazia de tudo. Hoje, não. Hoje há prédios com vinte, trinta, cinquenta frações, condóminos que nunca apareceram numa assembleia, apartamentos sobrelotados e decisões que demoram meses, às vezes anos, a sair do papel. E enquanto isso, quem vive no último andar continua a olhar para o teto com medo da próxima chuva.
A revisão de 2022 tentou melhorar alguma coisa, mas ficou-se por aí. Não resolveu o essencial. Continuamos agarrados às atas, às assinaturas, às formalidades e a uma burocracia que parece ter sido feita para desmotivar. É quase como se o papel valesse mais do que o prédio. Já vi juízes darem mais importância à forma da ata do que à gravidade da infiltração que destrói um teto. E isto, sinceramente, custa-me aceitar.
Os processos executivos então… são um pesadelo. Arrastam-se, perdem-se em notificações, voltam atrás. O condomínio é tratado como se fosse só mais um credor, quando o que está em causa é o direito básico de viver num sítio digno. As injunções são rápidas na teoria, mas lentas na prática. E enquanto o processo anda, o prédio degrada-se, o administrador desanima e os condóminos que pagam sentem-se tolos.
Nos Julgados de Paz, quando há, ainda se vai conseguindo alguma justiça mais humana. Mas nem todos os concelhos têm Julgado de Paz. E as câmaras? Poucas querem saber. Fala-se tanto de proximidade e cidadania, mas depois deixam os moradores entregues à sorte.
O que me incomoda mais é esta inversão de papéis. O incumpridor tornou-se o protagonista. É ele quem bloqueia as obras, quem impugna as atas, quem arrasta tudo. E a lei deixa. Dá-lhe tempo, recursos e até algum conforto. Já quem paga, espera. E no fim, paga outra vez.
Não é preciso ser jurista para perceber que isto está errado. As quotas do condomínio deviam ter execução prioritária. Devia ser rápido, sem burocracia. E as obras urgentes, quando há infiltrações ou risco elétrico, deviam poder ser ordenadas em poucos dias, ponto final. Não faz sentido que um telhado a cair dependa de uma ata bem redigida.
Mas o problema é mais fundo. Falta-nos uma mudança de mentalidade. Viver em condomínio é quase um micro-Estado, uma lição diária de convivência e responsabilidade. E esse contrato social falha quando o sistema não protege quem cumpre. Quando a justiça é lenta, quando os municípios se escondem atrás de formalismos, o prédio deixa de ser um lar e passa a ser um campo de batalha.
Cada processo de condomínio é um retrato do País. Há sempre o vizinho que não paga e acha que “não faz mal”, o administrador que tenta segurar o barco, o morador que dorme com um balde ao lado da cama e uma lei que parece feita por quem nunca viveu num prédio. E o mais irónico é que todos pagam, de uma forma ou de outra.
Enquanto a lei continuar a premiar a forma em vez da substância, a acta em vez da parede e a lentidão em vez da urgência, nada muda. E o país dos condomínios vai continuando assim, entre a infiltração que não se repara e o processo que nunca mais anda. Falta-lhe o mesmo que falta a tantos prédios, manutenção.
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