Há uma crise a instalar-se, a passos largos, na Psicologia moderna. Em vez de cumprir aquele que devia ser o seu objetivo primordial – a compreensão profunda do ser humano e a cura verdadeira das questões que impedem a sua felicidade e evolução – a Psicologia tem vindo a ser contaminada com o espírito do tempo – o foco no que é visível e no controlo comportamental.
Não é por acaso que, de forma insidiosa e implacável, as correntes cognitivocomportamentais tenham vindo a substituir as correntes psicanalíticas, psicodinâmicas e construtivistas nos currículos das faculdades de Psicologia.
Desta forma, os nossos psicólogos têm-se vindo a alienar do que é essencialmente humano e caem nas armadilhas da contemporaneidade: a auto-regulação, a autossuficiencia e a adaptação. E o mais grave de tudo isto é que são estes princípios que têm vindo a contaminar – de forma dramática – a intervenção psicológica na infância. Esse lugar onde a vulnerabilidade é maior – quer das próprias crianças, quer
dos pais, submersos em informação sobre “parentalidade positiva” e ansiosos e pressionados por uma sociedade que valoriza crianças reguladas e adaptadas. Por isso, na alegada Psicologia da infância, assistimos a “equipas de intervenção” que propõem intervenções múltiplas para uma mesma criança.
Proliferam terapias e grupos terapêuticos acéfalos, nos quais as crianças são sujeitas a intervenções infindáveis e inócuas do ponto de vista da cura efetiva do problema. Problema este que, muitas vezes, não existe propriamente. Cai-se na patologização excessiva (e ridícula) do comportamento tipicamente (e saudavelmente) infantil. Parece que, às crianças, deixou de ser permitido serem irrequietas e desatentas,
experimentarem os limites relacionais com os seus pares de forma espontânea e muitas vezes impulsiva (e não reflexiva), não gostarem particularmente de matemática ou de português, ou pelo contrário, serem perfecionistas. Também não podem ser descoordenadas a chutar uma bola ou a andar de bicicleta. Não podem não gostar de desportos coletivos, nem podem não conseguir falar em público. Também não podem
ser conformados e nunca reclamar. Mas também não podem reclamar e reivindicar de mais.
Tudo passa a ser motivo de ida ao psicólogo e de uma profunda e dramática intervenção familiar que vai, obviamente, levar à conclusão de que o problema está nos padrões relacionais e educativos da família… E, sem darem por isso, estão todos a ser intervencionados porque o filho de 7 anos se recusa a fazer os trabalhos de casa (o que, a meu ver, só revela inteligência).
Psicologia, psicopedagogia, educação parental, terapia familiar, intervenção em contexto escolar, intervenção em contexto real (também esta denominação acéfala – basta entrar um observador no nosso contexto real para tornar todo o cenário artificial), terapia ocupacional para a integração sensorial e para a coordenação psicomotora, para a seletividade alimentar, para conseguir saltar sem cair. As terapias infindáveis passam a ser um modo de vida destas crianças e destas famílias, numa pesada e dispendiosa rotina.
Essas mesmas terapias e esses mesmos terapeutas que criticam o excesso de atividades extracurriculares na infância.
Entendam: não é, de todo, saudável nem benéfico que as crianças frequentem sessões de psicologia e terapias adjacentes, semanalmente, como fazendo parte do seu horário de atividades.
É urgente que as terapias não retirem as crianças dos seus contextos de vida. O tempo que as crianças passam em terapias não pode ser maior do que o tempo que as crianças passam nas suas atividades formativas e de lazer. De efetiva aprendizagem e de efetivo estabelecimento e fortalecimento de relações nos seus contextos naturais de vida.
Temos de contrariar esta tendência da moda de sobre-analisar e sobre-patologizar as expressões normais do desenvolvimento. A racionalização, a reflexividade e a metacognição (que é o “pensar sobre o pensar”) não se devem substituir à vivência real e à efetiva aprendizagem. Aliás, podem mesmo ser prejudiciais, na medida em que retiram às crianças o que de mais precioso há na infância: a vivência espontânea do presente!
A moderna psicologia dedicada à infância tem a obrigação de refundar os seus princípios éticos e científicos e os seus valores. Porque creio que o atual estado das coisas é um perigosíssimo contrassenso: a alegada promoção da infância através da sua manietação e aniquilação.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.