Ponto prévio 1: Sou a favor de tudo o que ponha as pessoas a mexer.
Ponto prévio 2: O “eu tenho tanto direito de estar aqui como vocês” não justifica tudo.
Ponto prévio 3: Não pode valer tudo para ganhar dinheiro.
Vamos então por partes. O desporto faz parte da minha vida desde sempre e sempre de forma amadora. Faz parte da minha medicação diária para esta doença crónica que é um corpo que não tem eternamente 20 anos e uma mente com o mesmo problema.
Comecei a correr regularmente apenas em 2021 e nunca me incomodou a “febre” da corrida transformada em “running” nem nunca me faltou espaço para correr no paredão – embora no tempo mais quente, ali em Carcavelos, se note aquela disputa de espaço entre escolas de surf, caminhantes, donos de cães, corredores e simples veraneantes. Cada um sente como um incómodo a ideia de ter se desviar do sítio onde quer ou onde calhou estar para deixar alguém passar. Afinal, o espaço é público e todos têm o direito de ali estar.
Ora, mais acentuada fica esta questão quando em vez de o “problema” ser o direito a estar num espaço público, se põe a questão do “eu paguei para estar aqui”. Isto para nos levar ao que parece estar a tornar-se norma: organizações de provas de corrida com cada vez maiores dificuldades em gerir as multidões dispostas a pagar valores que andam ali entre os 10 e os 25 euros para participar, tanto a correr como a caminhar.
Na última Meia Maratona de Lisboa, que atravessa a Ponte 25 de Abril, correram nas redes sociais as vozes indignadas e as imagens inacreditáveis de filas para atravessar a meta. A meta! Um congestionamento com alguns metros que impedia quem tinha acabado de percorrer 21 km de concluir a sua prova. Atenção, que estamos a falar de participantes com dorsal, não de transeuntes que inadvertidamente tenham atrapalhado a chegada dos atletas. Ou seja, o problema não pode ter sido uma enchente maior do que a prevista, porque quem estava ali foram os que conseguiram uma inscrição.
No passado domingo, foi dia de mais uma Corrida do Benfica, uma prova de 10 kms, a que se juntou a caminhada de 5 kms. As duas vertentes tinham meia hora de diferença no arranque, com a corrida a partir primeiro, o que daria tempo, em teoria, para ninguém atrapalhar ninguém. Mas não foi o caso. Porque quem ia a correr a uma média de 5’30 ou 6′ minutos por quilómetro, antes de chegar ao quinto quilómetro da prova, cruzava-se com parte da multidão caminhante que continuava a ocupar a largura da estrada, indiferente à multidão corredora. O percurso dividia-se novamente mais adiante, para se juntar mais uma vez antes da meta. Acredito que muitos dos caminhantes que não se desviaram e continuaram a andar lado a lado tiveram o pensamento “eu paguei para estar aqui, tenho tanto direito como os que estão a correr”, a outros nem sequer lhes terá ocorrido que podiam estar a perturbar a prova dos 10km. Do lado dos corredores, não faltaram gritos de “caminhada para a direita! caminhada para a direita”. Afinal, também nós tínhamos pagado para estar ali.
Todas as provas, mesmo com caixas de partida diferentes consoante a previsão de tempo de chegada, implicam uma certa confusão ao início (até porque, muitas vezes, há pouco controlo na escolha destas boxes e há quem opte pela distância de corrida quando a intenção era caminhar desde sempre) que obriga a uma gincana. O que não pode acontecer é um “engarrafamento humano”, que leva às altercações comuns no trânsito rodoviário, porque as organizações… não organizam, ou não calculam bem as provas. Não pode valer tudo.
A promoção da atividade física, que cada vez mais estudos comprovam ser fundamental para a saúde física e mental, não pode servir de desculpa para alargar as vagas disponíveis nas provas de corrida. Uma caminhada é uma atividade física que pode fazer a diferença entre a saúde e a doença, mas não pode ser confundida com desporto – uma prática estruturada e com objetivos, mesmo que num plano simplesmente amador.
Nota final: Sobre a licença que a Federação Portuguesa de Atletismo quer aplicar aos participantes das provas lá iremos mais tarde.