1000 milhões de doentes mentais no mundo: é esta a estimativa redonda da Organização Mundial de Saúde. Neste Dia Mundial da Saúde Mental, é hora de para de suavizar artificialmente o panorama e falar de doenças mentais – porque saúde mental, há muito pouca. É o mais escasso dos recursos e a cadeia de abastecimento está comprometida. É uma pandemia sem a generosidade temporal do SARS-CoV-2 e laboratório algum lhe inventa vacina. Se entrasse no cabaz dos produtos essenciais, a inflação seria uma percentagem inultrapassável. Se juntássemos aos custos económicos reais das doenças mentais o investimento nulo em sistemas de saúde mental racionais e eficientes, daríamos um mergulho profundo na estagflação. As alterações mentais estruturais que provocámos na nossa bioquímica são ainda mais irreversíveis do que as do clima. E se ao chegar ao fim deste esquizofrénico parágrafo sente a ansiedade a instalar-se, a adição ainda mais tentadora ou vê inevitável a depressão, o remédio que o mundo de 2022 continua a oferecer é preconceito, subdiagnóstico, iliteracia em saúde, esperas de meses por uma consulta de psiquiatria sem follow-up, psicólogos no público em burnout e no privado a honorários proibitivos, e vergonha estigmatizante. Continuam também a oferecer-se, a preços simbólicos, caixas de antidepressivos e de ansiolíticos – o hiper receituário de pilulas mágicas já é um clássico intemporal. E exclama-se com horror perante os 703 mil suicídios e os 14 milhões de tentativas, por ano.
Talvez a tendência do momento seja falar de saúde mental: em termos suficientemente abstratos para ser assunto, mas com pouca personalização para fintar o estigma. E falar-se já não é nada mau. Mas será no mínimo irónico que o lema deste Dia Mundial seja “saúde mental e bem-estar, uma prioridade global”. A saúde mental está no top 3 mundial das preocupações com saúde, mas os decisores são surdos – não sei em que globo gravitará aquela intenção.
Prioridade Global? 1000 milhões de doentes mentais no mundo, mas a OMS vai adiantando que só a depressão e a ansiedade aumentaram 25% no primeiro ano da pandemia. Logo, estes milhões são contabilidade periclitante e curta. Talvez a voz do mercado seja mais sincera: no relatório “Global Antidepressants Drugs Market 2022-2026” espera-se que este cresça 5.22 mil milhões de dólares. Faz sentido: em 6 anos, o consumo mundial de antidepressivos cresceu cerca 35%.
Nas pílulas mágicas, Portugal é dos mais entusiastas consumidores: os primeiros europeus nos antidepressivos, segundos nos ansiolíticos. Só no primeiro semestre deste ano, foram receitadas 10.9 milhões de embalagens de antidepressivos, ansiolíticos, sedativos e hipnóticos – quase 60 mil embalagens por dia. Quanto é que isto custou ao SNS? 32,5 M€ (em 2021 o custo anual foram 52 M€). A quem é que isto valeu? A alguns, poucos, que conseguem desembolsar a medicina e psicoterapia privadas.
Todos estes assombrosos milhões em comprimidos refletem o desinvestimento global nos sistemas de saúde mental. A OMS reporta que os estados dedicam em média menos de 2% dos seus orçamentos da saúde à saúde mental – e desta miséria orçamental, 70% vai para o fim da linha: os hospitais psiquiátricos. As camas psiquiátricas devem ser a exceção de um sistema racional e preventivo, sustentado na comunidade, na terapia, no bem-estar. Não é de paredes e camas que precisamos: é de recursos humanos. Psiquiatras. Psicólogos. Enfermeiros especialistas. Terapeutas. Primeiros-socorristas de saúde mental. Portanto e por cá, quando António Costa diz que a saúde mental é uma prioridade governativa, deve estar a falar de betão. O financiamento da suposta reforma do SNS Mental nem sequer aparece nos orçamentos do Estado: está escondido no PRR, que prevê 88 M€ para infraestruturas e zero para recursos humanos.
O futuro. Se a prioridade global é feita de comprimidos e hospitais, os nossos governantes estão dementes ou loucos. No mínimo, desgovernados. E nós, vamos deixar-nos contagiar?
A saúde mental antónima das doenças mentais é preventiva, ocupacional e integrativa: (1) é aquela que prioriza a promoção da saúde em vez de remediar a doença e que age sobre o bem-estar psicológico infantil e adolescente para não gerar (mais) adultos doentes; (2) que se antecipa à dinâmica socioprofissional contemporânea e previne a doença através da saúde mental do-e-no trabalho; e (3) que dialoga com a saúde física e suas especialidades, porque o corpo é uma máquina integral e integrada.
As gerações Z e Y foram profundamente abaladas pela pandemia, e reconhece-se agora que a sua saúde mental é estruturalmente débil. Desde 2020, a prescrição de ansiolíticos cresceu substancialmente na faixa dos 18 aos 34 anos – não por melhor diagnóstico, maior severidade dos sintomas ou aceitação social do uso destes remédios, mas porque na infância e adolescência, estes jovens adultos não foram tratados pelos respetivos sistemas de saúde mental. Estamos a perpetuar o ciclo e condenar à doença mental os adultos de amanhã.
Em 2022, cerca de metade dos trabalhadores diz apresentar sintomas de burnout. A reação está a acontecer singelamente do lado do doente-trabalhador, enquanto empresas e Estados continuam a analisar a combustão. Na Europa dos 27, nós portugueses somos os trabalhadores com maior risco e taxa de burnout, com o 2.º pior resultado no Hapiness Index, o 3.º pior salário médio, a 4.ª pior carga horária semanal e os 6.º piores no equilíbrio trabalho-vida pessoal. E saúde mental ocupacional, também será “prioridade global”?
Quando resolvi ser voz ativa pró-saúde mental, usei como combustível a vontade de transformar a pior década da minha vida numa coisa positiva. À medida que vou conhecendo todos os cantos deste hospício chamado sistema de saúde mental, a raiva e inquietação têm-me aditivado o ativismo e são combustíveis à prova de crise energética, tal é a dimensão do estigma, da apatia corporativa e da incompetência governativa. Esta reforma faz-se nas nossas cabeças e em insistente uníssono. Maluco é quem continue a ignorar tudo isto.
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