A primeira sensação é de desconforto, a água está fria. Abro os olhos, mas tudo à minha volta se apresenta turvo. Sinto-me afundar naquela água. Engulo um pouco dela e não lhe reconheço o sabor. Aquela água é fria, turva, funda e sabe a estranho. Então, esbracejo, esbracejo muito, mas os meus gestos não me sustentam à tona. Olho em todas as direções, à procura de uma mão amiga, de algo a que possa agarrar-me, só que tudo é igualmente difuso, imperscrutável. Estas linhas poderiam dizer respeito àquela infância distante em que me vi numa piscina enorme, escura e a feder a cloro, para aprender a nadar, mas referem-se ao tempo presente e procuram refletir o que primeiro senti ao ler um romance.
Apesar de se afastar do hiper-realismo do romance histórico, As Doenças do Brasil, a mais recente obra de Valter Hugo Mãe, possui uma dimensão histórica clara e conduz o leitor a uma reflexão em torno do colonialismo. Executa-o, todavia, através da poderosa ferramenta que é a imaginação, e que este autor muito preza, usando o trabalho de linguagem enquanto meio, na medida em que reconfigura a sintaxe e o léxico, como amiúde faz a poesia. E o golpe de asa, a esse nível, deu-se quando Valter Hugo Mãe optou por colocar essa sua característica autoral, uma exuberante naturalidade do dizer poético, no expressar de índios, que em tantas narrativas, históricas ou ficcionais, nos habituámos a ver exprimirem-se de modo simultaneamente desconforme e sapiente. O resultado é um português miscigenado, credível aos olhos de quem lê, mas que se demora a assimilar. O que rapidamente se percebe é que as doenças do Brasil, expressão de forma muito apropriada pedida de empréstimo ao padre António Vieira, são as doenças brancas, isto é, os males que os colonizadores europeus impuseram na vida dos povos vermelhos e negros. Exemplo de uma doença branca representada de modo claro na narrativa é o da violência sexual sobre os povos oprimidos. Honra é filho de uma mulher Abaeté, a tribo criada pelo autor, e de um branco, um animal branco, que a violou. Por raiva, nunca por ódio, Honra procura matá-lo, ainda que acabe por não o fazer – há no livro, diga-se, uma rejeição da violência pelo ódio, que já estava presente em Homens Imprudentemente Poéticos, o livro anterior de Valter Hugo Mãe. O seu amigo Meio da Noite – porque nesta história índios e negros amigam-se por serem ambos subjugados pelos brancos – é um escravo foragido. Sobre estes assuntos, já muito se disse (e muito mais se dirá, porquanto este romance será provavelmente basilar no contexto do estudo da obra de Valter Hugo Mãe), pelo que, feito o enquadramento, regresso ao princípio. Enquanto editor, interessa-me sobretudo abordar a opção de um autor que, ao escrever numa língua que, sendo a de quem lê, não o é totalmente, obriga esse mesmo leitor a estranhamento idêntico ao que se enfrenta quando se lê numa língua desconhecida, fazendo com que este se sinta estrangeiro. E essa pequena ideia, mas de grande significado, não só põe o leitor branco no devido lugar, como também simboliza as diferenças culturais entre colonizados e colonizadores.
Foi só por volta da página setenta que me senti menos estrangeiro – isto é, menos desconfortável na leitura – no novo romance de Valter Hugo Mãe. A começo, e como referi, senti-me sem pé. A sensação foi semelhante à que recordo ter experimentado, há muitos anos, quando li Pioravante Marche, de Beckett, o livro que ficou celebrizado por aquelas três pequeníssimas frases: “Tentar outra vez. Falhar outra vez. Falhar melhor”. E, tal como Beckett, Valter Hugo Mãe não tem medo de falhar; por isso, arrisca. Partindo de um certo aborrecimento face ao consumado, o autor dá a ideia de não ter medo de, ao largar a mão ao leitor e deixá-lo sem pé, também ele se perigar enquanto autor. A dado momento, talvez a meio da leitura, pousei o livro e perguntei-me: quantos autores seriam capazes de, depois dos seus maiores êxitos, os que fizeram deles escritores reconhecidos pela crítica e consagrados pelos leitores (A Máquina de Fazer Espanhóis, por exemplo, aproxima-se da 30.ª edição), que lhes deram afago, confiança e, não menos importante (se formos honestos), dinheiro, quantos autores seriam capazes de, de modo deliberado, enveredar por caminhos em tudo diferentes e de apostar noutros, de destinos obscuros, e por isso incapazes de prometer os confortos e as alegrias que todos (se forem honestos) desejam?
Apesar de conhecer bem o escritor e a pessoa, o que me espanta em Valter Hugo Mãe – quase tanto como a evidente capacidade de se relacionar com a língua portuguesa como pouquíssimos conseguiram – é a coragem que evidencia. É um exemplo de audácia, de intrepidez. De um brio admirável que resulta num apreço e num respeito invulgares por quem o lê. Um escritor que se põe à prova a cada livro, fazendo de forma diversa do que sempre fizera, que explora as possibilidades da literatura, criando livros diferentes de todos os que já se escreveram, e que desafia os leitores, propondo-lhes novas sensações, só pode merecer a minha admiração. Testemunhei de perto a angústia violenta que instalou no peito de muitos leitores de A Desumanização, senti o despropósito da guerra e das inimizades entre iguais que a construção parabolar de Homens Imprudentemente Poéticos propõe. E, se estes eram já universos sem referências, não soube onde encaixar o que li nas primeiras muitas páginas de As Doenças do Brasil. Entredentes, insultei o autor. Era de manhã e, sem necessidade, dei por mim a acender a luz do candeeiro, buscando iluminação extra para um texto no qual eu não estava a conseguir entrar por motu proprio.
Talvez não devesse chamar brio aos ímpetos e às liberdades criativas de um escritor, mas, que diabo, resistir ao canto sedutor da popularidade é, nos dias que correm, provavelmente mais difícil do que nunca. Sucede que não duvido de que, hoje como ontem, a intrepidez do artista passa justamente por não perder a liberdade criativa e é essa que tem regido o percurso de Valter Hugo Mãe, um autor que, com As Doenças do Brasil, me demonstrou que, mesmo para quem como eu até pratica natação, nunca é tarde para reaprender a nadar.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.