Por razões que só o Governo conseguirá explicar, o documento posto a debate público sobre o Plano de Recuperação e Resiliência a enviar a Bruxelas não continha partes substanciais do seu desenvolvimento. Na Saúde, como provavelmente noutras áreas, as partes que agora vieram a público não trazem especiais novidades, limitando-se a densificar um pouco mais algumas das ideias gerais do documento inicialmente conhecido. Levantar, com isto, uma querela política não faz, por isso, qualquer sentido e é manifestamente exagerado.
Já aqui tinha feito um comentário geral sobre o primeiro documento, considerando-o um conjunto de boas intenções, com falhas e omissões importantes. A versão desenvolvida agora conhecida, não concretiza completamente as boas intenções e mantém as principais lacunas.
1 – Parte de um diagnóstico já sobejamente conhecido há mais de 30 anos, designadamente quando fala no fraco investimento em promoção da saúde e prevenção da doença, quando menciona a forte fragmentação dos cuidados de saúde ou quando diz que os portugueses são, na Europa, um dos povos que mais gasta em desembolso direto (out-of-pocket) em cuidados de saúde (agora cerca de 30% das despesas gerais de saúde, quando com Passos Coelho esse valor chegou a atingir os 35%, ou seja, parece estarmos numa boa trajetória). Apesar deste diagnóstico, que todos nós facilmente subscrevemos, o desenvolvimento do plano acaba por não ser suficientemente coerente nas intenções e nas medidas. Por um lado, continua a ver os cuidados primários, os hospitais e os cuidados continuados como departamentos com políticas paralelas e autónomas. Por outro lado, não encara as principais razões que conduzem aos pagamentos diretos, designadamente os próprios subsistemas de saúde que o Governo veio recentemente acarinhar e alargar a novos beneficiários.
2 – O Governo apresenta um novo regime excecional de contratação de mais profissionais de saúde, sobreponível a uma política de abertura e aumento de profissionais no SNS iniciada em 2016, com a contratação líquida de cerca de 25 mil novos colaboradores até 2020, de entre os quais, mais 4 mil médicos e cerca de 10 mil enfermeiros. Para este ano propõe a contratação de mais 8400 profissionais de saúde.
É bom recordar que este aumento brutal de profissionais no SNS não teve uma correspondência muito evidente no aumento da atividade dos serviços, na diminuição sensível das listas de espera, no aumento da atividade dos blocos operatórios ou no trabalho dos médicos de família. Neste caso, a manutenção das urgências hospitalares em níveis similares, quando não superiores, a anos anteriores, prova a ineficácia dos cuidados primários e a sua manifesta incapacidade de reter e tratar a casuística mais simples ou clinicamente controlável. Reconhecer assim, como o plano faz, as virtudes das Unidades de Saúde Familiares é, neste contexto, uma opinião manifestamente exagerada e perde-se uma oportunidade importante de reflexão sobre o seu funcionamento e os seus resultados.
Um dos tópicos mais relevantes no funcionamento e nas respostas do SNS às necessidades dos cidadãos prende-se com a disponibilidade dos profissionais, sobretudo dos médicos. O documento volta a referir a vontade política do governo, ainda que tímida, de experimentar regimes de dedicação plena. Percebe-se bem a diferença deste conceito face ao da exclusividade. O primeiro coloca aos profissionais o desafio de estarem disponíveis para trabalhar mais e dentro de novos horários, se a procura assim o justificar; em contrapartida, o Governo estará disposto a pagar um valor fixo pelo trabalho base e pela disponibilidade e um valor variável associado ao desempenho, à sua qualidade e ao ritmo imprimido. A resiliência do SNS aumentará com certeza e as listas de espera poderão ter uma efetiva resolução. A exclusividade significa pagar mais por mais horas de trabalho, mas não por mais e melhor trabalho. Ou seja, o divórcio entre o esforço que é pedido aos profissionais e as necessidades dos doentes mantem-se e as horas extraordinárias são a única solução para, aqui ou ali, termos alguma disponibilidade acrescida. O Governo faz bem em optar por novas formas de remuneração em vez de embarcar no erro da exclusividade. Gastará muito menos, mas sobretudo servirá melhor os portugueses.
O documento desenvolve um pouco mais a ideia, já anteriormente expressa, de dotar os cuidados primários com novas competências, na saúde oral, em meios complementares de diagnóstico de menor complexidade ou na área da reabilitação física. Com isso se pretende internalizar uma grande parte do consumo deste tipo de serviços que os cidadãos fazem junto de entidades privadas convencionadas. Parece-me uma ideia que pode vir a tornar mais cómoda a vida dos doentes e poderá representar um melhor e mais eficiente controlo de recursos financeiros. Resta todavia uma dúvida: os investimentos a fazer para criar estas novas funcionalidades nos centros de saúde e a proverbial baixa produtividade doa serviços públicos, não deveriam admitir a alternativa de, em determinadas circunstancias, concessionar estas prestações a entidades privadas já rotinadas e com capilaridade?
Há também, nesta matéria, uma aposta renovada nos serviços de proximidade, quer em consulta à distância quer em tratamentos e consultas no domicílio dos doentes. Temos pouca tradição neste tipo de serviços e sentimos sempre, do lado dos profissionais, alguma relutância em aceitar este tipo de trabalho. A COVID desbloqueou as desconfianças quanto às vantagens da teleconsulta ou do telediagnóstico, mas as visitas domiciliárias continuam a ser um modelo de trabalho mal-amado pelos profissionais. Pode ser que com os carros elétricos previstos para as deslocações se consigam envolver mais profissionais no futuro.
O PRR avança uma nova visão para a reforma da gestão hospitalar. Centra-se no modelo de gestão e de responsabilidade dos diferentes gestores (de topo e intermédios) e num processo alinhado e coerente de objetivos a cumprir, quer na vertente assistencial quer na vertente económico – financeira. Estes compromissos passarão a ser pessoais, através da assinatura de um contrato de gestão que implica os administradores e os diretores de serviço ou coordenadores de áreas clínicas integradas. Haverá um quadro de indicadores que abrangerá diferentes dimensões (de qualidade, efetividade e eficiência) cujas metas serão ordenadas de acordo com um benchmarking nacional baseado na complexidade e dimensão dos hospitais. Nada aqui parece ser novo ou extraordinário e corresponde ao que de mais básico se vê em qualquer modelo de gestão empresarial. A gestão clínica tem também de ser submetida a métricas objetivas do sucesso alcançado, dos custos envolvidos e da produtividade dos recursos humanos. Tudo de forma transparente, clara e comparável. Os hospitais já praticam a gestão por objetivos, mas faltava a componente de accountabiltiy, envolvendo agora também os responsáveis pelos serviços clínicos. Este escrutínio é essencial para o Governo e para os cidadãos e em muitos países já é realizado.
Verdadeiramente inovadora é a ideia de dotar o SNS de ferramentas que permitam estratificar o risco de cada cidadão estar doente e o nível e complexidade do seu estado de saúde. É o que tecnicamente se designa como identificar a carga de doença da população portuguesa. Esta informação, numa população muito envelhecida e alvo frequente de doenças crónicas, tem dois objetivos essenciais: ao identificar a carga de doença de cada pessoa, adequar de forma preventiva o conjunto de serviços de que ela vai necessitar no curto e no médio prazo; do mesmo modo, se pretende adequar recursos para grupos populacionais ou regiões, atendendo às caraterísticas da população, e fazer análises comparativas sobre o comportamento dos prestadores, ponderando o mix de risco de cada grupo ou região. A previsibilidade, a adequação clinica, o controlo da morbilidade e os custos são, assim, melhor e mais rigorosamente monitorizados.
3 – Outra boa novidade do Plano prende-se com a revolução, sem precedentes, nas TICs da Saúde. O capítulo sobre a “transição digital”, cujos investimentos até 2024 representarão cerca de 300 M€, promete-nos, já para 2022, a substituição total do parque informático ao serviço dos profissionais de saúde, hoje tão lento, tão obsoleto e sem intercomunicabilidade, como toda a gente reconhece. Também nos promete que até 2024 o SNS disporá de um sistema de informação clínica transversal a todos os níveis de cuidados, único e integrado, o que será um passo fundamental para que os cuidados integrados possam ser, a prazo, um desiderato finalmente conseguido. Os processos clínicos serão únicos por doente em todos os planos de cuidados e o médico poderá ter acesso fácil e imediato ao seu conteúdo, para diagnóstico, ajustamento terapêutico, acompanhamento ou controlo de resultados.
Estamos convencidos de que este PRR poderá produzir, apesar das lacunas de que enferma, resultados muito positivos para o futuro da população portuguesa nesta área tão relevante para todos nós como é a da Saúde. Assim a passagem das ideias e dos projetos à prática se concretize, como esperado, e algumas incongruências sejam, entretanto, corrigidas.