A pandemia suspendeu-nos as relações sociais e desnudou a solidão, já sequer sem uma tanga, como problema de saúde pública. A solidão, que não é o mesmo que isolamento social, ataca-nos a saúde mental e física, e mata. Não é coisa de velhinhos, não é mera angústia nem sintoma pandémico do coronavírus, é-lhe tão anterior. Também não é sempre, mas é muitas vezes, depressão, síndrome de ansiedade, perda de capacidade cognitiva, abuso de substâncias, distúrbios de personalidade e adaptação. Ataca o cérebro e o coração. Não saímos deste pandemia em pleno arco-íris, não vai ficar tudo bem – sobretudo no sítio onde já muito ia tão mal, a nossa mente. Mas que seja oportunidade para quebrarmos mitos e sairmos de alguns armários. O humano contemporâneo sofre de solidão, paupérrimo de uma rede social que lhe chegue – e não falo de um Facebook ou do Instagram.
O que é a solidão? É doença. Eu, solitária (talvez) crónica, me confesso. Venham ao confessionário comigo.
A solidão grave e persistente é um fenómeno contemporâneo, das sociedades desenvolvidas e individualistas, diminui com a idade e é maior nos homens do que nas mulheres. Foi esta a espantosa conclusão do “BBC Loneliness Experiment”, que. em 2020. desconstruiu o mito e expos os números: cerca de 30% da humanidade experimenta a solidão, em risco de ser persistente e se tornar doença. Não, a solidão não é uma patologia da idade nem coisa da senhora dos gatos, cinquentona que não encontrou marido. É problema dos millennials, e também dos trintões e dos quarentões, dos filhos da veneração capitalista do indivíduo acima do grupo. Fez-se doença sobre os destroços da tribo e do homem colaborativo. Antes do coronavírus, já lhe chamavam epidemia. Eu ouso dizer que, pós-Covid-19, a solidão junta-se ao verdadeiro tsunami pandémico do milénio: a falta de saúde mental.
O mundo soltou o queixo quando, há semanas, o Japão criou o Ministério da Solidão. Como se a elevação a pasta governamental nos deixasse todos nus na nossa desadequação e carência. Mas a politização da solidão não é novidade, tem ministra no Reino Unido desde 2018. Porque a solidão tem um brutal impacto na nossa saúde, custando biliões em dinheiros públicos e perdas de produtividade. E também porque a solidão impacta na saúde democrática, e há quem diga que isso não tem preço.
O problema não nasceu com a pandemia, porque o isolamento social é a ausência objectiva de contactos sociais, e coisa bem diferente de solidão, um fenómeno subjectivo, discrepância entre as relações sociais que realmente temos e as que desejávamos ter – dois humanos semelhantes, têm a mesma quantidade de relações familiares e de amizade: a um basta, a outro mata. A solidão não se desconfina, não abre o pequeno comércio e os museus e a solidão vai-se. Ao criar um Ministério da Solidão para combater as consequências pandémicas do isolamento social, o Japão tapou o sol com a peneira.
A solidão é um problema de saúde social. A nossa sociedade mudou mais depressa do que a nossa mente conseguiu acompanhar, despegou-se das estruturas familiares, de vizinhança, da rede social de afetos. Os artifícios da social media não nos dão online aquilo que nos falta offline. Não é carência de vitaminas, é défice de relacionamento social. A solidão é uma dor psicológica com impacto biológico e que, tornada crónica, pode matar. O risco de mortalidade associado é superior ao da obesidade, e reduz a esperança de vida tanto como fumar 15 cigarros por dia. Quanto mais tempo persistir, maior o risco de cancro e diabetes, a debilidade do sistema imunitário, a predisposição a doenças cardiovasculares e endocrinológicas- para não voltar à saúde mental. Como é que isto sucede? Quando nos sentimos sozinhos, o subconsciente deixa-nos mais alerta aos perigos em nosso seu redor e o cérebro responde entrando em modo “fight or flight”, estado de stress psicológico e de sobrevivência. Desencadeia uma reacção hormonal e química que nos altera fisiologicamente – acelera-nos o coração erespiração, músculos tensos –, prepara-nos para enfrentar uma ameaça que não existe, é ficção da solidão. A activação constante desta resposta de stress destrói-nos a saúde, não importa a idade. O remédio é, milenarmente, a sensação de segurança que nos dá a companhia dos outros. Eu vivi quase quarenta anos neste estado e nas suas consequências imunitárias e mentais. A solidão emocional (a ausência de figuras íntimas de apego) declinou-me para uma solidão social (défice de capacidade de ou rede de conexão) que cedo se fez solidão deprimida e ansiosa. Quem me conheça, extrovertida e acelerada, espanta-se. Para mim, é extraordinário fazer esta catarse e perceber a simplicidade explicativa dos meus tormentos – e saber fugir-lhes sem regresso.
O Japão criou o Ministério da Solidão porque até outubro de 2020 morreram mais nipónicos por suicídio do que por covid-19, e registou-se uma subida de 750 suicídios face a 2019 (a primeira subida face ao ano anterior em 11 anos), sendo os suicidas jovens abaixo dos 18 anos e mulheres. É o país do Kintsugi, a arte das cicatrizes preciosas que junta os cacos partidos com pó de ouro, porque as falhas não são defeitos, são evolução. Mas é também a sociedade em que os mais jovens não sabem interagir sem a fantasia de Cosplay, as mulheres saíram de casa para trabalhar e contratam namorados nos tempos livres e abraçar é de uma exigência emocional inexorável. O que sucede nesta sociedade peculiar, há muitos anos, é solidão emocional, social e deprimida. Mas o demais mundo ocidental, império dos sentidos capitalistas, não está melhor. Nos EUA, 60% sofrem de solidão, com particular dor na geração Z e nos millennials – não são os almoços que não se servem grátis, são os laços. Na Europa, os dados antes do estudo da BBC eram pobres, e em Portugal são pífios: no SNS24 invoca-se um estudo feito a uma fortuna de 1200 pessoas para dizer, como já mundo afora se percebeu ser disparate, que a solidão é patologia idosa.
Quando desconfinarmos livres do SARS-CoV 2, continuaremos a trazer a solidão connosco para a rua. Sofrer não é vergonha, mas não é sina. Temos de enfrentar as causas, ou duram-nos mais século e meio as consequências.