Quando finalmente se começa a vislumbrar a concretização da esperança, com redução do número de doentes internados por infecção com o Sars-CoV-2 e do frenesim das urgências, permitimo-nos começar a pensar no depois, no pós-Covid. Que realidade estranha, essa. Não será possível voltar ao antes, teremos de nos reinventar, mais uma vez. Que medicina, que mundo será esse?
Antes do caos, aquela a que chamamos casa passou por uma profunda metamorfose. Ergueram-se paredes e muros de pladur, dividiram-se corredores, separaram-se vias de circulação, classificaram-se os elevadores em “limpos” e “sujos” – confesso que cheguei a ter dificuldade em decidir em qual entrar. As nossas enfermarias passaram a funcionar através de barreiras físicas, a comunicação por papéis colados em vidros, gestos para dentro dos quartos, por vezes walkie-talkies – tanto que os queria usar em criança e era preciso inventar esconderijos e missões impossíveis para lhes dar sentido. O contacto com os doentes tornou-se distante, desumanizado, passaram a ser observados através de superfícies embaciadas, o toque acontece através de superfícies de nitrilo ou latex.
Ativámos o modo apaga-fogos e, apesar do esforço em contrário, acabámos inevitavelmente a correr atrás do dano, cientes de que estamos a praticar a melhor medicina possível, mas não a melhor que sabemos. Quando as cinzas começarem a ceder, ainda teremos noção do que isso é, o melhor que sabemos?
É fácil antecipar a exaustão crescente que se avoluma. Apesar do cansaço, sabemos que a adrenalina vai desencantando sempre mais uns cartuchos para queimar, vamos gerindo mais uma adaptação, mais uma mudança. Facilmente entramos em piloto automático e arrastamos a fadiga um pouco mais para a frente. São só mais uns dias. Já falta pouco.
Só que, à medida que imaginamos o reverso da metamorfose, o percurso de volta já não é o mesmo. Perdemos as migalhas do caminho e a realidade que vamos encontrar não é a mesma de há um ano. Não são só as manchas de lixívia nas madeiras, a corrosão dos metais que os emperra e encrava. Vamos acabar a pandemia de rastos e teremos de arregaçar as mangas novamente, desta vez para redefinir rotinas, reescrever as semanas, agarrar os doentes crónicos desamparados, estudar novos doentes. No fundo, reerguer o Sistema Nacional de Saúde. Sem uma pausa para respirar fundo, desligar desta realidade, deste ano interminável – isto, admitindo uma visão optimista da coisa -, e ganhar a distância necessária para uma nova perspetiva.
Estaremos capazes de voltar ao nosso melhor de antigamente? Quando isto acabar voltaremos às doenças de antes. Doenças que, na verdade, não chegaram a desaparecer, mas não tivemos vagar para nos atualizarmos em todas as frentes e rever conceitos esquecidos. Como gerir esta ansiedade antecipatória? Onde estão os nossos mestres, que nos levaram pela mão durante a nossa formação, permitindo-nos o tempo e espaço para aprender com serenidade? Os nossos tutores, que ergueram o hospital antes de nós e nos apresentaram o melhor que a medicina tinha para nos oferecer? Se, por um lado, temos agora a nossa oportunidade de redesenhar a medicina que queremos ter, por outro, não há mapas que nos orientem nos próximos caminhos.
Os desafios sucedem-se e acumulam-se, cá dentro continuamos a colocar questões, a alinhavar projetos. A pandemia de Sars-CoV-2 não vinha nos calhamaços em que estudámos e os dados que vamos recolhendo talvez nos ajudem depois a perceber novos mecanismos de doença, por forma a antecipar a evolução e a gravidade de situações futuras. Também é essa curiosidade constante que nos move e estimula para querer fazer sempre um pouco mais e melhor. Mestres, a herança que nos deixaram foi reconfigurada e esperamos estar à vossa altura, à altura do que aí vem. Mestres, não baixaremos os braços. Creio que um de vós, com a mão pousada no meu ombro, agora me diria qualquer coisa como Calma, o fim da pandemia ainda vem longe e em tempos de guerra não se limpam armas.