1.O SNS festejou na semana passada os 41 anos da sua existência. A sua criação mudou completamente o acesso a cuidados de saúde para a maioria dos portugueses. Os principais indicadores de saúde evoluíram rapidamente para padrões idênticos aos dos melhores países do mundo: partos em instituições de saúde, esperança de vida padronizada para todas as idades, mortalidade infantil, eliminação de doenças infeciosas, acesso a tecnologia avançada para o tratamento do cancro, vacinação (tendo hoje um dos mais completos planos do mundo),transplantes, hemodiálise, etc.
Talvez fosse caso para dizer que o SNS está bem e recomenda-se. Mas isso não é verdade. Tem muitas lacunas, vícios e maleitas crónicas que limitam os resultados, cidadãos sem acesso atempado a cuidados de saúde, populações distantes dos serviços, uma oferta pouco flexível e pouco sensível às circunstâncias de vida das pessoas. E por isso assistimos na última década ao aumento acentuado da oferta privada, designadamente na área hospitalar. E, também, à vontade indisfarçável de muitas forças políticas para que o Estado financie a saúde, mas dê aos privados a oportunidade de prestar aos cidadãos melhores cuidados que o SNS.
O SNS tem tido muita dificuldade em adaptar-se às novas necessidades dos portugueses, cada vez mais envelhecidos e carentes de respostas integradas, contínuas e de proximidade, que lhes diminuam deslocações adversas para a sua condição. O SNS ancorou-se em instituições como os centros de saúde, os hospitais e agora, também, os cuidados continuados e paliativos. Em nenhum momento se privilegiou o atendimento no domicílio, o acompanhamento do doente crónico em casa ou no lar aonde reside, a consulta do médico de família fora do seu espaço habitual de trabalho, em áreas de dia ou centros de ocupação dos tempos livres. Esta visão, muito institucionalizada, obriga a que sejam os doentes a deslocar-se até aos locais de atendimento, até para marcar uma consulta ou solicitar uma informação. Os profissionais, com exceções sempre louváveis de equipas pluridisciplinares de enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos, assistentes sociais e muito raramente também médicos, têm sempre muita resistência em aceitar sair da sua zona de conforto, para ir visitar um doente ou acompanhar uma terapêutica. O sacrífico dos doentes e das famílias é, assim, em muitos casos, um esfoço enorme e humilhante, que os empurra para salas de espera cheias, com horários curtos de atendimento, por vezes com deslocações em maca, desumanas e em situação clínica muito crítica. O exemplo das urgências hospitalares é paradigmático desta desconformidade entre a necessidade e a forma mais adequada de lhe dar resposta. Em muitos países europeus os serviços públicos têm outra versatilidade e sentido humano e talvez por isso as urgências hospitalares apresentam um volume muito mais baixo.
2.Saiu recentemente o relatório anual de 2019 sobre o acesso a cuidados de saúde, editado pela ACSS. Vale a pena repararmos nalguns pontos relevantes desse documento.
Há desde logo uma evolução muito positiva em vários indicadores de saúde: a taxa de mortalidade infantil atingiu um dos valores mais baixos de sempre e dos melhores a nível mundial – 2,8 por mil, bem melhor do que no ano anterior. Os óbitos prematuros (em pessoas com menos de 70 anos) estão a diminuir, ainda que lentamente, tendo passado de 22,3% do total (2012) para 20,6% (2018 e 2019). A esperança média de vida à nascença subiu de 78,9 anos em 2007 para 80,9 anos em 2019. A esperança média de vida aos 65 anos aumentou quase 1 ano entre 2010 e 2019, cifrando-se agora nos 19,61 anos. A mortalidade, em pessoas com menos de 70 anos, por doenças cerebrovasculares, baixou significativamente de 2010 para 2018 (de 13,2% para 9,9%). Pelo contrário, a taxa de mortalidade por doença isquémica do coração antes dos 70 anos, subiu de 12,4% para 14,0%.
A infeção por VIH tem descido consistentemente desde 1999, e os novos casos de SIDA baixaram, anualmente, de 1200 para 250. Os rastreiros do cancro da mama e do colo do útero evoluíram muito positivamente nos níveis de adesão face a 2010: 64,7% vs. 56,1% (mama); 87.9% vs. 64,3% (colo do útero), para taxas de cobertura geográfica de 83 e 98%, respetivamente. Ao invés, para o cancro do colon e reto, apesar da expressiva subida da cobertura geográfica (hoje de 78%) a adesão dos cidadãos baixou substancialmente de 2010 para 2019 (de 81% para apenas 32%).
Continuamos com resultados pouco consistentes na prestação de cuidados primários. Os recursos têm aumentado significativamente nos últimos 10 anos, com o dobro de USF, que cobrem já mais de 63% dos inscritos. Deste universo total, cerca de 93% têm médico de família atribuído, quando em 2010 esse valor era de 82,1%. Em 2019, o saldo entre entradas e saídas de médicos de MGF, foi positivo em 192 novos médicos e as Regiões do Norte, Centro e Alentejo, apresentavam taxas de cobertura superiores a 94%. Em Lisboa e Vale do Tejo e Algarve as taxas de cobertura são mais baixas, mesmo assim superiores a 86%. O que nos deixa estupefactos é que apesar deste incremento de recursos, as consultas médicas em CSP desceram cerca de 5% entre 2010 e 2019, não se encontrando razões plausíveis para este fenómeno. As consultas médicas realizadas no domicílio dos doentes são praticamente inexistentes (0,62%) e a chamada “consulta aberta”, ou seja fora das marcações, reduziu-se em 65% em 2019 face a 2010. Por outro lado, as consultas realizadas no chamado horário pós- laboral dos doentes (das 17 às 20 horas) continuam a ter uma baixa expressão – cerca de 14% do total das consultas, valor estável nos últimos 10 anos. As consultas realizadas no próprio dia do pedido são apenas 41,8% do total, valor que representa um retrocesso face ao que acontecia em 2016. Todas estas más notícias têm como corolário a desistência ou desinteresse de muitos inscritos em visitar o seu médico de família, com cerca de 32% de utentes classificados como não frequentadores permanentes. Esta falta de atratividade manifesta-se depois nos serviços de urgência hospitalar, com o ano de 2019 a bater o recorde da década com 6,4 milhões de atendimentos, ao ritmo de 17,5 mil observações por dia. Um valor impressionante que todos os governos têm tentado combater, inclusive com medidas administrativas de aumento das taxas moderadoras, mas que não se consegue debelar.
Quanto aos hospitais, o acesso dos doentes a consultas e cirurgias agravou-se nos últimos 10 anos: de 80 para 84 dias, em média, para uma primeira consulta; de 2,6 para 3,3 meses para ser operado. É certo que melhoraram os tempos de espera em doentes prioritários e muito prioritários, medidos pelo cumprimento dos Tempos Máximos de Resposta Garantidos: em 2010 apenas 50 % dos doentes muito prioritários viam respeitados aqueles tempos e em 2019 esse valor passou para 73%. Mesmo assim, esperar quase 3 meses por uma consulta e mais do que isso por uma cirurgia, é um tempo infindável para um doente, imaginando, entretanto, que a sua situação pode piorar irremediavelmente. Perceber bem as causas destes atrasos, que na maioria dos casos nada têm a ver com falta de recursos, é a chave para podermos ultrapassar com sucesso esta pecha crónica que se vai agravando. Mas, desde logo, parece haver problemas sérios de organização e de produtividade, a que se junta agora a suspensão da atividade normal dos hospitais por causa da COVID – 19.
Termino com duas boas notícias sobre o SNS. Temos um dos melhores planos de vacinação do mundo e todas as vacinas e doses avaliadas até aos 7 anos de idade, atingiram, em 2019, 95% dos objetivos programados, com 95 a 99% das crianças a cumprirem os esquemas vacinais recomendados. Iniciou-se em 2018 um projeto nacional para a hospitalização domiciliária a que já aderiram 24 hospitais do SNS. Em 2019 foram tratados nesse regime 2.500 doentes, com resultados satisfatórios para eles e para as equipas que os acompanharam. São experiências de desinstitucionalização desta natureza que ajudam a modernizar o SNS, dando respostas mais consentâneas com o interesse e a segurança dos doentes, com menos custos e mais humanização.