Q. Letra normalmente associada ao nível de acesso máximo a informação classificada. Q. Assinatura utilizada por um anónimo (ou grupo de anónimos) em fóruns como o 4chan desde o final de 2017 para veicular as primeiras “informações” acerca da “tempestade”. Momento em que, por ação de Donald Trump e seus apoiantes, predestinados e únicos capazes de combater uma poderosa rede, vários democratas, incluindo Barack Obama e Hillary Clinton, a par de outras personalidades Americanas como Lady Gaga ou Tom Hanks, serão detidos pela liderança / participação numa organização secreta (um “deep state”) que promove tráfico e abusos sexuais de menores, atividades satânicas e conluios em negócios ilegais com diversos Estados, incluindo a Rússia.
Q. Inicial de Qanon, teoria ou conspiração hoje disseminada pelos EUA por apoiantes de Donald Trump, defendida e promovida em eleições por candidatos e eleitos locais e nacionais, com marca e merchandising diverso associado e discutida abertamente em diversos círculos da sociedade civil e na comunicação social.
Em tempos como o que vivemos, à incerteza provocada pela evolução da pandemia, junta-se a ausência de conhecimento sobre o vírus, a ansiedade decorrente das inúmeras notícias negativas com as quais fomos confrontados nos últimos meses, e esperamos vir a ser confrontados nos próximos, e uma sensação de falta de controlo por parte dos cidadãos, tudo “condimentos” para o aparecimento de (e o envolvimento em) narrativas “contra-oficiais” que garantem uma ilusão de controlo e, habitualmente, uma explicação para ações menos adequadas de pessoas / grupos que quem as dissemina ou promove apoiam.
Narrativas que assentam em inimigos (reais ou imaginários) externos à pessoa ou ao grupo e que funcionam como cimento para o vínculo à narrativa e/ou ao grupo que a promove. Narrativas que crescem em círculos ao sabor dos medos e das vulnerabilidades de quem a elas adere, procuradas em fóruns ou espaços (reais ou virtuais) de encontro, de proximidade e de confiança cega – porque a referência e a reverência têm mais valor que a procura da verdade, a ciência ou mesmo a razoabilidade. Narrativas que se desenvolvem alicerçadas em estados afetivos indutores de mecanismos específicos de controlo cognitivo sobre o processo de escolha, que quem as espalha utiliza procurando manipular os outros.
A conspiração vive, portanto, da polarização que se previne com diálogo e com a promoção de indivíduos e comunidades mais empáticas. A conspiração vive do obscurantismo que se previne com mais conhecimento disponível e com mais literacia. A conspiração vive da vulnerabilidade de indivíduos e de comunidades que se previne com maior capacitação e menor desigualdade. A conspiração vive da repetição e procura do mesmo ângulo que se previne com atividades e algoritmos que através do “paternalismo libertário” orientem ferramentas tecnológicas para estimularem acesso ao “diferente” e ao contraditório. A conspiração vive do contágio que se previne com inoculação.
É necessário investir no (re)conhecimento das emoções, que estão no centro da nossa vida mental e dos processos de decisão. Há mais de 20 anos António Damásio fez referência aos “marcadores somáticos”, ou seja, ao que sentimos e que tantas vezes nem percebemos que sentimos, como base da orientação da pessoa nas suas escolhas. Sendo a democracia baseada em escolhas livres e conscientes das pessoas, só poderá ser plena se poucos não tiverem possibilidade influenciar muitos no sentido que desejam a partir da exploração dos seus estados afetivos.
É também necessário ter presente que a comunicação mediada pela tecnologia, particularmente as redes sociais, é distinta remetendo para estados emocionais diversos e propícios a comportamentos diferentes daqueles que adotamos na comunicação face a face com outras pessoas. Aqui o “certo”, o correto, assume-se muitas vezes como dogma percursor de clivagens “nós” vs “eles”, da linguagem dos amigos vs inimigos e as sensações do medo e da urgência. Sendo a democracia baseada na liberdade, o paradigma da verdade deve avançar da procura da “razão” e de estarmos sempre “certos” para um maior acolhimento das “verdades” dos outros.
Finalmente, sendo a democracia assente no respeito pela diversidade, é essencial o reconhecimento que os movimentos discriminatórios das pessoas são normalmente automáticos e não-voluntários. Por isso mesmo não se resolvem a partir de imposições ou acusações de ignorância ou com discussões bipolares. São resultantes de aprendizagens não-conscientes, podendo ser trabalhados, e progressivamente alterados, a partir desse reconhecimento voluntário e do acréscimo de atenção e cuidado aos processos de tomada de decisão face a pessoas “diferentes” de nós.
Muito, muito naturalmente, se tem refletido sobre as consequências sanitárias da pandemia. Também muito, muito naturalmente, se tem refletido sobre as consequências sócio-económicas da pandemia. Pouco, muito pouco, se tem refletido sobre as consequências para as democracias, liberdades e para o nosso modo de vida da pandemia. Pouco, muito pouco, se tem pensado nas vulnerabilidades individuais e comunitárias como terreno fértil ao autoritarismo, totalitarismo e às conspirações. Fenómenos promovidos por indivíduos e grupos que utilizam conhecimento, hoje significativo, de como as pessoas tomam decisões e do que determina o seu comportamento. Fenómenos que deveriam ser prevenidos pelos Estados e pela sociedade civil dos países utilizando conhecimento, hoje significativo, de como as pessoas tomam decisões e do que determina o seu comportamento.
A ciência psicológica aí está, à disposição e ao serviço da democracia e da liberdade.
Tiago Pereira – Coordenador do Gabinete de Crise COVID-19 da Ordem dos Psicólogos Portugueses
Miguel Ricou – Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e CINTESIS. Presidente da Comissão de Ética da Ordem dos Psicólogos Portugueses