Nos últimos tempos, tem crescido a ideia de que a população não vota ideologicamente, antes vota em soluções concretas para os seus problemas do dia a dia, pelo que a distinção ideológica entre esquerda e direita deve ser ultrapassada ou muito mitigada.
Alguns dos protagonistas desta visão sobre a política “solucionadora” são fáceis de identificar. Foram os inspiradores daqueles que durante a legislatura finda fizeram da ideologia um substantivo acusatório, como se no “eu acuso” não existisse, em si mesmo, uma enorme carga ideológica.
O aparente lugar neutro da não ideologia que levou a direita, em cada debate relevante, a acusar as esquerdas de se cristalizarem na ideologia e não “nas pessoas” – basta recordar a discussão sobre a Lei de Bases da Saúde – é todo um programa ideológico não confessado. E por isso perigoso.
O ensaio da denominação das esquerdas como “esquerdas radicais” ou “esquerdas unidas” visava assustar o eleitorado com base numa alusão histórica a ideologias-fantasmas, em suposta contraposição ao lugar da higiene de uma direita pronta para solucionar o problema do cidadão sem olhar para o custo principiológico da receita.
“O que queremos é que as pessoas sejam atendidas num hospital”, dizia-se, por exemplo, “seja ele público ou privado”, “não nos interessa a ideologia”. A frase é apelativa e, parecendo ficar no mundo da gestão administrativa da coisa pública, implica, claro, o repúdio da consideração coletiva do bem público “saúde”. Esquece a visão macro, portanto.
Esta aparente higienização ideológica é o leito do populismo, o lugar dos que se afirmam paulatinamente contra “os de sempre”, prontos a porem à venda a receita que diz ao eleitor, que tratam por tu, que o sistema falhou, que os partidos políticos estão ultrapassados, que a política tem de ser feita com novos rostos, gente de fora, que, claro, as ideologias nunca resolveram os problemas de ninguém.
Vamos começar uma legislatura singular. Num mundo particular em que a receita dos populistas tem vingado com força crescente. Aos partidos tradicionais que por erro estratégico enveredaram pelo ataque à política e aos partidos novos que são a negação da política responde-se com política.
Isto é: responde-se afirmando a nossa identidade ideológica. Não tomamos o carácter ideológico das nossas escolhas como insulto, mas como consequência de sermos quem somos. Da imigração, à saúde, passando pelos direitos individuais, há e continuará sempre a existir uma clivagem democrática entre esquerda e direita.
Ao lugar-nenhum ideológico dos populistas responde-se desmontando esse lugar-nenhum. Dizendo, precisamente, que ali está um lugar cheio do nosso fim.
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