Como qualquer sociedade, Portugal tem as suas mitologias. Uma das mais famosas será a do povo de brandos costumes que a História das guerras liberais, da República, do reviralho, da Guerra Colonial estão longe de autorizar. Mas o mito salazarento é confortável, e a História uma maçada. Publique-se, pois, o mito.
O racismo, ou a sua quase inexistência na sociedade portuguesa, é outro dos nossos grandes lugares mitológicos. Que esteja por comprovar o nosso caráter plástico, acolhedor, aberto e tolerante é um empecilho menor. A fantasia lusotropical é tão simpática como a ilusão dos brandos costumes, e eis quanto tem bastado para fazer do racismo um quase-interdito na nossa sociedade.
Ora os interditos nunca são saudáveis – nem psicológica nem socialmente. Tolhem o raciocínio, impedem a reflexão, reprimem a consciência. Os episódios recentes no bairro da Jamaica são, portanto – ou deveriam ser –, um excelente pretexto para se fazer uma reflexão profunda, sem tabus nem ideias feitas, sobre a mitologia racial em Portugal.
Mas aqui chegados, convém olhar para o caráter mais conjuntural dos episódios recentes para enquadrar, de forma intelectualmente séria, os termos desse debate urgente. É que não basta gritar racismo para congelar a razão. Não basta gritar racismo para dispensar os cuidados mínimos que estamos dispostos a garantir, quando alegamos a existência de qualquer outro tipo de delito ou de crime. Não basta gritar racismo para que se justifique uma acusação sem provas, um julgamento precipitado ou uma condenação sumária. Não basta gritar racismo para outorgar um estatuto de superioridade moral ao acusador, o qual o dispensa da maçada de argumentar, fundamentar, expor factos e argumentos no quadro de um debate livre e racional.
Se invoco os particularismos deste debate recente (sim, é às atitudes irresponsáveis do Bloco e de Mamadou Ba que me refiro) é porque me parece fundamental que tenhamos claro qual é o resultado que queremos obter com um debate amplo, sério, profundo, sem interditos, de qualquer tipo, sobre o racismo em Portugal. E esse desiderato, na minha cabeça, está claro. Quero viver numa sociedade em que a cor da pele desapareça por completo das nossas opções políticas, sociais, económicas – sejam essas opções coletivas ou individuais; sejam elas opções conscientes ou (atenção) inconscientes; expressas ou tácitas; conjunturais ou estruturais.
Mas esse desaparecimento quer dizer isso mesmo: desaparecimento. Não quer dizer a manutenção de um conflito, de uma dialética, de uma oposição em que simplesmente se invertem os termos do debate numa perpetuação absurda do mesmo conflito que se quer eliminar. Nada menos do que a erradicação absoluta de qualquer tipo de discriminação com base na cor da pele nos deve ou pode satisfazer. Nada menos, mas também nada mais. E isso, lamento, não é compatível com guerras identitárias que são a negação paradoxal do mal que se quer combater. Vai sendo tempo de deixar cair as bafientas categorias mentais de génese marxista e de basear a guerra contra o racismo larvar da sociedade portuguesa num humanismo radical que é a nossa verdadeira casa comum