Um dos exercícios mais estéreis em que o ser humano pode empenhar-se é avaliar (ora para glorificar, ora para condenar) acontecimentos e decisões do passado à luz daquilo que sabe no presente, arrogar-se em juiz do decurso da História com os filtros ultramodernos e progressistas da segunda década do século XXI. Ainda mais absurdo é tentar transpor para a contemporaneidade ideias e condutas de figuras inspiradoras (ou repulsivas) que, naturalmente, resultaram das circunstâncias em que estas viveram, isto é, de um contexto irrepetível.
Há, por exemplo, quem use o excesso de tempo livre de que dispõe a unir pontos históricos e evangélicos com o intuito de concluir se Jesus Cristo era de esquerda ou de direita, se corresponderia à expectativa criada entre os judeus de que seria um líder político revolucionário disposto a libertar – pelas armas, se necessário – o seu povo do jugo romano. Para os devotos, a resposta do Messias acerca da obrigação de os seus pagarem, ou não, impostos ficaria acima do “sim” ou do “não” que pretendiam sacar-Lhe e deveria encerrar a discussão: a César o que é de César, a Deus o que é de Deus.
Vem o intróito a propósito do afã social-democrata em recorrer, sem cautelas ou pudores, ao histórico Francisco Sá Carneiro. Não há presidente (ou aspirante a essa condição), dirigente (ou contestatário) ou mero cacique que não transporte quotidianamente na algibeira uma frase feita do líder histórico pronta a ser debitada em qualquer intervenção pública.
Somente uma menção desgarrada a Sá Carneiro, é sabido no universo “laranja”, aquece a alma do militante-tipo. O nome do fundador carrega uma aura que em tudo se aproxima da mitologia e do sebastianismo. Chega a ser pavloviano: aquelas dez letrinhas, seguidas de uma tirada assertiva, bastam para que desapareça de uma plateia o aspeto blasé. Sá Carneiro é a maquilhagem dos discursos que são “poucochinho”, é o Photoshop da vulgaridade. Tal como Mário Soares (no PS) ou Adelino Amaro da Costa (no CDS) – no PCP, nem a veneração por Álvaro Cunhal suplanta o culto do coletivo – já nos poupou de inúmeros momentos de vergonha alheia.
Em todo o caso, é infinitamente maior a desconsideração pela memória e pelo legado de Sá Carneiro quando, oportunisticamente, se lhe decalcam as palavras a despropósito ou se lhe adivinham ações em auto-defesa. É risível que Rui Rio, acossado pelos opositores internos, se socorra da máxima de que a “política sem ética é uma vergonha”, especialmente depois do seu primeiro ano de mandato. Assim como roça o disparate que Luís Montenegro, perante a recusa de diretas, sugira que Sá Carneiro, estando na sua posição, “faria o mesmo” desafio ao presidente em funções.
Que Sá Carneiro seja, ainda hoje, tido como referencial ideológico do PPD/PSD, que sempre foi mais pragmático (ou cínico, se quisermos) do que ideológico, tudo bem. Diferente é que esse pólo agregador seja utilizado internamente – pelos que se arvoram em guardiões da social-democracia – ou até pelos adversários externos para impor limites aos líderes e ditar-lhes aquilo que o partido pode e deve ser. Que o diga Pedro Passos Coelho. Olhe-se para o lado: Francisco Assis e Sérgio Sousa Pinto acabaram a combater moinhos de vento por recordarem António Costa do especial zelo que Mário Soares dedicou a conter a expansão de forças com as quais o PS hoje se acomoda.
Talvez seja prudente que o PSD acerte o passo e que os seus melhores quadros abdiquem de axiomas que 40 anos de democracia tornaram obsoletos ou vazios. E que, de caminho, perceba que não presta um bom serviço a si mesmo (e ao País, já agora) ao invocar Sá Carneiro em vão. Deixem-no quietinho. A social-democracia, no que quer que se traduza atualmente, agradeceria.