Na mitologia grega, Medusa era uma divindade marinha de uma beleza rara e cobiçada. Um dia, foi violada por Poseidon, senhor dos mares, causando a fúria de Atena, deusa da civilização. Dada como culpada da sua própria desgraça, Medusa foi duplamente vitimizada, ao ser transformada num monstro com cabelo de serpentes, como castigo. A partir desse dia, todos os que olhassem diretamente para ela transformavam-se em pedra, fazendo com que a sua desgraça fosse partilhada por contágio.
Até hoje, repete-se o mito. A violência contra as mulheres tem a característica especialmente perversa de apontar o dedo à vítima e não ao agressor. Afinal quem a mandou sair de casa com aquela minissaia? Quem a mandou viajar sozinha? Quem a mandou andar na rua àquela hora? Quem a mandou subir ao quarto dele? Quem a mandou beber demais? Quem a mandou manter-se naquela relação? Quem a mandou ter aquele trabalho? Quem a mandou ficar calada tanto tempo?
Somos implacáveis. A fúria de Atena é, de facto, a fúria da civilização patriarcal em que vivemos. E é este caldo cultural que justifica, normaliza e legitima este duplo critério: uma mão pesadíssima no castigo das mulheres (vitimizadas) e uma complacência hipertolerante com os homens (agressores).
A ideia de masculinidade que culturalmente estabelecemos parece continuar a fazer dos homens criaturas semisselvagens que não controlam os seus picos de testosterona. E as mulheres (sérias, decentes e que se preservam) têm o dever moral de se pôr a salvo dos seus ímpetos.
Somos incapazes de olhar para um caso de violação sem procurar atenuantes, na conduta da vítima, para a culpa masculina. Alguma coisa ela deve ter feito para aquilo acontecer. Se a presunção de inocência existe (e bem) para os homens (alegadamente agressores), é recusada às mulheres vítimas de violência sexual.
O mais grave é que isto acontece nos cafés, nas escolas, em conversa de barbeiro ou balneário, mas também nos tribunais. O da Relação do Porto tem dado bons exemplos disso, infelizmente. Isto brota do senso comum, dos discursos conservadores, das redes sociais, mas muitas vezes também de pseudoprofissionais de saúde, como a médica Maria do Céu Santo, em entrevista à RTP com Judite de Sousa.
Os clamores desesperados pela defesa da presunção de inocência masculina, com a simultânea descredibilização das alegadas vítimas, podem vir da esquerda de Raquel Varela às tertúlias cor-de-rosa da astróloga Maya na CMTV. O viés está em todos os olhares, precisamente porque é cultural e está naturalizado.
Além de tudo isto, para muita gente, a ideia de violação resume-se ao ataque por parte de um desconhecido, que arrasta uma mulher para um beco escuro e a penetra com violência, controlando pela força as suas tentativas de defesa. Ora, além dessa possibilidade, existem todas as que cabem na categoria de sexo sem consentimento.
Pode existir violação dentro do casamento. Pode existir violação na prostituição. Pode existir violação numa relação sexual consentida inicialmente, a partir do momento em que uma das partes recusa determinada prática e é forçada a isso. Pode existir violação sem condicionamento físico, por via da chantagem, da coação ou de relações de poder tão desiguais que a vítima não tem a liberdade de escolha. Entre muitas outras situações…
Enquanto não reconhecermos o livre consentimento como a linha que separa as águas. Enquanto não reconhecermos as vítimas como tal. E enquanto não reconhecermos os (alegados) agressores como arguidos da justiça, com os seus direitos fundamentais, mas sem a habitual complacência de duplo critério, que aligeira sentenças e suspende penas. Somos todos cúmplices. Alimentamos a cultura de violação que protege os criminosos e atira a culpa às medusas. Já que, afinal, somos nós que as transformamos em monstros e evitamos olhar para elas. (Não vá o mundo perceber que o nosso coração já é de pedra).
(Crónica publicada na VISÃO 1336, de 11 de outubro de 2018)