Após um juiz ter dado ordem de prisão a Lula da Silva a 5 de abril, milhares de pessoas puseram-se a caminho da sede do sindicato dos metalúrgicos em São Bernardo do Campo, cidade industrial nos arredores de São Paulo, criando assim uma barreira protetora do antigo Presidente do Brasil. Em outras cidades, concentrações de apoio foram rapidamente organizadas, filmadas em direto e transmitidas pela internet. Esta mobilização revela o que há de mais elevado em alguns, como no caso de uma senhora que, em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, fala à multidão, explicando o quanto está feliz neste momento dramático. Outrora prisioneira política da ditadura militar, tendo em seguida vivido dez anos na clandestinidade, regozija-se por ver o povo ocupar os espaços públicos em nome de Lula, da liberdade e da democracia. É assim todo um coro se levanta, nas ruas e nas praças, fazendo ouvir a voz popular.
Estas imagens contrastam – e muito – com as captadas em dezembro de 2016, por ocasião da entrega dos prémios da revista Isto é, no cenário alcatifado do Citibank Hall, em São Paulo. Aí estavam então presentes algumas figuras de proa do golpe de Estado parlamentar que afastou a Presidente Dilma Rousseff, poucos meses antes. A Michel Temer, seu sucessor, estão reservados o lugar de honra e o prémio mais importante. No seu discurso, aquele que será pouco depois apanhado em flagrante delito de obstrução à justiça, e acusado pelo procurador-geral de dirigir uma organização criminosa, promete “salvar o país”. Na primeira fila do palco, integralmente branca e masculina, está também José Serra, seu ministro dos Negócios Estrangeiros. Demitiu-se em seguida, alegadamente por motivos de saúde, mas soube-se mais tarde que era investigado por financiamento ilegal da campanha. A algumas cadeiras de distância senta-se Geraldo Alckmin, governador do estado de São Paulo e candidato derrotado por Lula nas presidenciais de 2006.
A outros protagonistas foi dada a segunda fila. Entre eles, Aécio Neves, candidato vencido em 2014 por Dilma Rousseff, que no momento da cerimónia da Isto é não tinha ainda sido apanhado em processos de corrupção e não caíra ainda, portanto, em desgraça. Ele mesmo entregou um dos prémios da noite. Sentado a seu lado, o juiz de primeira instância que persegue Lula e que emitiu o seu mandado de captura, Sérgio Moro, fala com ele, sorridente e cúmplice. O juiz Moro está também sob os holofotes nesse serão, nomeado que foi pela revista como um dos “Brasileiros do Ano”. Mal recebeu o seu prémio, e antes de dirigir-se ao auditório em nome do combate à corrupção, apertou a mão às importantes personagens da primeira fila, com a devida vénia. O conjunto forma um perfeito quadro de corte – e de conspiração.
Nos últimos dias, o vasto coro de pessoas que envolveu Lula, personagem maior do drama, responde a esta elite brasileira. Mas… ainda é tempo? Se há crime contra Lula, é em dois sentidos. Por um lado, prende-se um cidadão – e não é de somenos ver que cidadão: o mais emblemático de todos – sem que pudesse produzir-se contra ele uma só prova clara de qualquer infração. Por outro lado, os que conspiram e ocupam lugares eminentes no seio do Estado, do cartel mediático e do mundo dos negócios – mesmo lugares subalternos, ainda assim tornados rodas centrais da engrenagem, como o juiz Moro – formam uma autêntica associação de malfeitores, um bando organizado de colarinho-branco.
Antes de perguntarmos se Lula é realmente o líder corrupto que os tribunais condenaram, devemos ter presente que, num país como o Brasil, a justiça infelizmente não é igual para todos. Tal como não são iguais entre si no acesso à saúde, à educação e à habitação, os brasileiros também não o são perante a lei. A igualdade é uma noção ausente na justiça. E as clivagens de raça, de classe, de sexo, ainda demasiado profundas para permitir a imparcialidade das instituições. O que é verdade no geral, é-o ainda mais quando se trata de Lula. Pelo facto de ter sido o único sindicalista eleito e reeleito Presidente em eleições livres, ele atrai todas as paixões, desde a grande admiração ao ódio visceral. Presentemente, como é reconhecido até por Reinaldo Azevedo, um dos editorialistas de direita mais virulentos no ataque ao Partido dos Trabalhadores de Lula, o antigo chefe de Estado é “vítima de um processo de exceção”.
Não é só a sua eleição que o inconsciente da elite branca e masculina nunca pode suportar. Também não suportou a eleição de uma mulher para a liderança do país, uma antiga presa da ditadura, torturada pelos militares, uma mulher incorruptível que foi ultrajada e cuja queda foi precipitada precisamente pela sua intransigência em pactuar com deputados e senadores desonestos. As lágrimas subiram-lhe aos olhos quando, em 2014, apresentou o relatório da Comissão Nacional da Verdade, que se esforçava por enunciar explicitamente alguns dos não-ditos e das malfeitorias da ditadura militar (1964-1985). Dilma esteve entre os grandes defensores desta Comissão. Como Lula, converteu-se num alvo dos media mais influentes, com destaque para a Isto é e sobretudo o grupo Globo que, no momento da instauração da ditadura militar, há 54 anos, saudou o golpe de Estado como restauração da ordem e da democracia…
Não acontece o mesmo com Michel Temer. Com a participação ativa dos media dominantes, conseguiu fazer calar o potente “Fora!” que ressoou através do Brasil, quando escutas telefónicas lhe fizeram cair a máscara. E comprando deputados à força de milhões de reais do erário público, conseguiu com que os parlamentares rejeitassem, por duas vezes, as acusações da Procuradoria contra si.
Como resultado de tudo isto, o Brasil é um país dilacerado. No mês passado, Lula, Dilma e o Partido dos Trabalhadores percorreram em caravana três estados do Sul do Brasil, os que lhes são menos favoráveis. Aqui e ali, dirigentes de partidos aliados juntaram-se-lhes nos comícios. Onde quer que parasse a caravana, uma multidão entusiasta reunia-se. No entanto, na berma da estrada, manifestantes atiravam ovos e pedras contra os carros, por vezes sob o olhar complacente da polícia. Simultaneamente, alguns organizavam-se em milícias protofascistas e atacavam verbal e fisicamente os apoiantes de Lula. Depois, tiros foram disparados contra o autocarro que transportava os jornalistas. Interrogado no próprio dia acerca do incidente, Geraldo Alckmin, um dos protagonistas da gala da Isto é, reagiu espontaneamente: “Acho que eles estão colhendo o que plantaram.” Vinte e quatro horas depois, sob pressão dos seus e como “bom democrata”, retificou: “Todas as formas de violência devem ser condenadas.” Tarde demais. Já se havia percebido o que ele no fundo pensava.
Na internet, entretanto, os discursos de ódio não sofrem retificações, como o prova a massa de violentos comentários publicados. Este discurso materializa-se também nos insultos proferidos contra artistas, como o testemunha Chico Buarque. Cantor aclamado, poeta maior, ele próprio antigo exilado da ditadura e apoiante de Lula, contou durante um concerto no mês de dezembro que os vizinhos do seu bairro rico do Rio, o Leblon, lhe gritam por vezes à passagem: “Viado! Vá para Cuba! Viado! Vai passear em Paris!” E ironiza Chico Buarque: “O único consenso é o viado.” Nada disso, porém, o impediu de sentar-se uma vez mais ao lado de Lula, diante de uma sala apinhada, para o seu último comício de apoio, a 2 de abril, no Rio de Janeiro.
O ódio político – de classe, de raça, de sexo –, se não é o único motor desta história, faz com certeza as suas vítimas. A mais conhecida é a vereadora Marielle Franco, uma mulher de 38 anos, negra, nascida na favela, esperança da política popular, abatida no mês passado no Rio. A sua execução, cujas responsabilidades provavelmente nunca serão apuradas, foi o primeiro ato do género e teve ressonâncias internacionais.
Perante as manifestações de ódio, Lula replicou que o seu partido não dará a outra face a quem lhe bater. Com efeito, o PT apresentou queixa contra os agressores da caravana que foi possível identificar. Ao mesmo tempo, o ex-Presidente reiterou que o ódio só leva à destruição, e insistiu no lema “Lula paz e amor”. Coloca-se assim no papel de um conciliador possível, como o foi nos anos 2000, e um pouco como Mandela o foi antes no seu país. Porém, a hora de pacificar e de reconciliar não parece ainda ter chegado. Nestes dias, no Brasil, é pedido a cada qual que escolha o seu campo.
Os 11 juízes do Supremo Federal sabem disso. Divididos, votaram 6-5 por duas vezes, a 22 de março e a 4 de abril, uma vez dando razão aos advogados de Lula, outra contrariando-os. Convém acrescentar que a presidente do tribunal adota processos de baixa política, a fim de prejudicar Lula, recebendo em troca críticas de juristas e magistrados. No seu conjunto, estes 11 juízes sofrem pressões terríveis. Por exemplo, na véspera do último julgamento deste caso, o Chefe do Estado-Maior do Exército tuitou o seguinte: “O Exército brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais.” Uma declaração produzida quando os militares se sentem livres de tomar posição pública sobre questões políticas ou judiciais, e que o Presidente Temer considerou ser da ordem da “liberdade de expressão”. E só o decano do Supremo Federal respondeu ao general, sem todavia o nomear, lembrando a separação de poderes e os limites inultrapassáveis que os “agentes do Estado” devem observar.
Lula foi preso no sábado, 7, no mesmo local onde, em 1980, os agentes da ditadura militar o detiveram. Com isso, o país entrou num impasse ainda maior. E se sabemos como poderia sair dele com dignidade – respeitando as regras da democracia representativa –, ninguém sabe se este caminho ainda permanece aberto. Mesmo na cadeia, Lula será influente, continuará a ser uma ameaça para as elites corruptas e pesará nas próximas eleições. Haveria outra solução, trágica, e conhecêmo-la bem demais: o seu assassínio e a instauração de uma ditadura militar que poria “tudo no lugar”. Tal passo não é fatídico, mas também não é impensável. Se o bando de malfeitores no poder chegar a tais extremos, o Brasil reencontrar-se-á com o pior da sua história. E seria toda a América Latina que entraria num longo inverno dos povos…
(Artigo publcado na VISÃO 1310, de 12 de abril de 2018)