Quando o comboio tornou cómoda e célere a viagem desde o Norte até ao Sul da Europa, em meados do século XIX, a nobreza e alta burguesia dos países frios da Europa começaram a passar os Invernos nas estâncias de mar de Itália e de França. Atrás do dinheiro e da bella vita proporcionada por esta sociedade opulenta seguiam também artistas, intelectuais, compositores, escritores. Este movimento elitista que estaria na origem do turismo de massas décadas depois beneficiou a economia precisamente das localidades que eram servidas por uma estação ferroviária: Nice, Monaco, Biarritz, Cannes. No caso da costa italiana, a cidade lígure de Rapallo tinha sido o destino favorecido pela nova moda.
Quando eu vivi em Rapallo, no início da década de 90, a cidadezinha tinha perdido há muito a notoriedade e o charme de um século atrás. No entanto a sua marginal e centro histórico adjacente mantinham uma agradável, requintada, dimensão humana. Eu divertia-me a procurar nas fachadas das casas as lápides comemorativas de estadas célebres, colocadas pelo município num estilo que só um vereador da cultura italiano poderia realizar: “Fugindo das nórdicas brumas, de Fevereiro a Maio de 1901, nesta casa residiu Jean Sibelius. De tirrénica luz impregnada a sua alada fantasia, aqui compôs a sua Sinfonia nº 2”; ou “Encontrando porto de abrigo para o seu espírito inquieto, hóspede no Hotel de la Posta, no Inverno 1882-1883, Friedrich Nietzsche aqui compunha a primeira parte de Assim Falou Zaratustra, destinada a transmitir no tempo a imensa profundidade do pensamento e a genial inspiração poética”…
Três razões explicavam a decadência desta rainha oitocentista das estâncias di mare. Por um lado, outras localidades, como Portofino, San Remo e Viareggio tinham-lhe usurpado o trono; por outro lado, a moda de fugir ao frio do Inverno tinha sido alterada pelo hábito de ir de férias no Verão e a marginal de Rapallo, que era tão elegante para passear no clima temperado de Janeiro, não era apropriada para tomar banho na canícula de Agosto: faltava-lhe uma praia. Mas uma terceira e mais grave situação ocorrera aqui. Com o milagre económico do pós-guerra a pressão imobiliária para construção de apartamentos de férias, aliada a uma autarquia ávida e insensível, produzira o desastre de ordenamento de território que desfigurara para sempre a antiga pérola da Riviera. De tal maneira o caso de Rapallo tinha traumatizado a sensibilidade pública que ainda hoje o termo utilizado em italiano para uma situação de desastre urbanístico é rapalizzazzione.
Tendo crescido na Figueira da Foz, a antiga “Biarritz Ibérica”, uma das cidades mais bonitas do mundo até aos anos 70, eu testemunhara a rapalização da zona mais nobre da cidade, a marginal oceânica, durante os anos 80 e 90. Viajando, em cada regresso a casa era atingido com mais um prédio feio, anónimo e igual a todos os outros prédios feios do mundo, erguido onde antes estivera um bairro de pescadores, um mansão histórica ou uma área verde. Este processo que contou com a atitude negligente das sucessivas autarquias não pode ser justificado como ignorância e insensibilidade própria daquela época, a extraordinária colecção de postais das décadas anteriores, onde a cidade se mostra orgulhosa e variada, prova que a Figueira sabia o valor da sua beleza ímpar. O que tínhamos antes era único; hoje, qualquer periferia de Beirute ou Lima tem igual. A minha perplexidade aumenta quando hoje sei, na altura não sabia, que o mesmo erro já tinha sido perpetrado nos anos 50 na Côte d’Azur, nos anos 60 na Riviera italiana, nos anos 70 na Costa del Sol espanhola e nos 80 no Algarve. Quando me dizem “deixa lá, Gonçalo, é nostalgia a mais”, recordo a famosa frase de George Santayana: “Os que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo.” Santayana, que nasceu em meados do século XIX em Madrid mas escolheu viver em Itália, conhecia bem Rapallo. Sorte a dele, foi antes da rapalização.