A única maneira de respeitar a tradição e, dessa forma, mantê-la viva, é transgredindo-a, transvestindo-a, de certa maneira até, desautorizando-a, des-respeitando-a se for (por ser) preciso. Que é coisa que não acontece assim muito por cá. Os usos, os costumes, os dogmas, as estéticas, as éticas, os maneirismos, as calças, as baixelas, as fachadas e as cantilenas de um povo são o que o definem, e atravessam o tempo e as gerações através disso a que se chama tradição, que se faz coisa viva, que se faz cultura, quando vivida realmente pelas pessoas, na sua vida normal, diária, nas idas à loja, à bomba de gasolina, ao bar. A cultura que existe em Portugal não é propriamente portuguesa. Talvez assim seja por sermos um País muito apegado à tal coisa da “tradição”. Temos por tradição não deixar a nossa tradição arejar, respirar. Cultivamos a nossa tradição em óleo, conservando-a em lata, muita vezes. O rancho é o rancho, o fado é o fado, o bacalhau é o bacalhau e ai jesus se ousamos deixar respirar, aventar, arejar. Lembro-me de ser puto e ver na televisão uma mesa redonda de intelectuais a discutir se era permitido ou não a inclusão de contrabaixo no fado. Sempre que um agrupamento folclórico se apresenta na televisão, é com bastante “respeito” pela tradição. Na música, nos trajes, nas danças. Há sempre uma ala que regozija com o bonito que é respeitar e manter “vivas” as tradições. Que lindo que é ver os jovens a respeitar e a manter a tradição. Mas na realidade não há grande coisa a ser mantida ali. Mantida talvez. Mas não há nada ali a ser transportado, carregado. Nem sequer a ser respeitado. Não quanto o que é transportado na música dos Diabo na Cruz, umas das bandas da minha predileção, na qual pontifica o genial Jorge Cruz, que realmente parece carregar alguma coisa dum certo património genuinamente português, de cada vez que produz uma canção. No caso dos Diabo na Cruz existe uma opção clara em trazer a uma música que lhes geracionalmente natural todo um imaginário que lhes é geograficamente próximo, sem pretensiosismos de tradição serôdia. Dona Ligeirinha, Saias, Luzia, Vida de Estrada, são tudo canções realmente portuguesas sem se submeteram a essa calda de açúcar que transforma tudo na fruta cristalizada da “tradição” e do “folclore”. São melodias naturais, próximas a todos nós, mas tocadas não num cordofone regional qualquer do século XIX mas antes no cordofone no qual toda a malta do liceu aprendeu a tocar, que é a guitarra eléctrica. Caso contrário já não seria natural, seria meramente folclórico, pitoresco, auto-referente, auto-celebratório. Não seria o objeto de arte valioso que é. Não nos podemos ver, portugueses, através de outra que não esta forma de tradição, esta trans-dição. Não nos podemos ver refletidos no espelho embaçado da fruta cristalizada. Não se trata de mudar por mudar. Não é mexer por mexer. Não é “melhorar” ou atualizar. Nem sequer inovar, pois isso já pressupõe uma vontade, uma ideia de consequência, contrária a todo o ato verdadeiramente criativo. É deixar girar com o mundo que gira. A “tradição” com t pequeno precisa de ser salva. As coisas da vida que importa carregar de geração em geração fogem a sete pés do que quer que as queira salvar. Como o diabo da cruz. Como os Diabo na Cruz.
(Os diabo na Cruz vão apresentar-se em concertos nos Coliseus do Porto e Lisboa no próximo mês de novembro: vão ver.)
(Crónica publicada na VISÃO 1307, de 22 de março de 2018)