Como é sabido, o voto de pesar pela morte de Belmiro de Azevedo contou com a oposição do PCP. Como é natural, para mais naquele que foi para muitos um momento de justificada emoção, o gesto suscitou um coro de revoltas. Julgo que, no essencial, falham o alvo. Mas para explicá-lo preciso de fazer uma deriva.
Comecemos pois por uma pergunta que é mais do que retórica: para que serve um voto de pesar na Assembleia da República? A primeira hipótese é a de que se trata de um gesto meramente simbólico, igual a tantos outros na nossa vida social e que se limitam a sublinhar o pesar pela morte de qualquer um de nós. Numa sociedade humanista, respeitadora do valor da vida em comunidade (e, mais importante, respeitadora do simples valor da vida) curvamo-nos naturalmente perante a perplexidade da morte. É um gesto urbano, respeitador do outro, solidário com o sofrimento dos que ficam. Note-se que não menorizo a importância de gestos de urbanidade. Têm a sua função social e esta é da maior importância. O meu ponto é tão só o de distingui-los de gestos mais marcadamente políticos. E essa é a segunda hipótese. Nesse cenário, um voto de pesar na Assembleia da República é sobretudo um juízo político. O momento para fazer-se uma avaliação política, necessariamente ideológica, do legado de uma qualquer figura pública. Não está em causa o pressuposto de que todos lamentamos a perda de qualquer vida humana. Essa é uma posição de princípio, adquirida pela nossa sociedade. O que estará aqui em causa é um balanço, não tanto da mulher ou do homem, mas da herança política que deixa.
Pois bem, é neste quadro de raciocínio que me parece que as críticas falham o alvo. E a razão deve ser por esta altura evidente. Se estamos perante uma avaliação política, não podemos esperar que um partido que faz da luta contra o capitalismo a sua mais profunda razão de ser, um partido que ainda oficialmente acredita nos amanhãs que cantam do comunismo coletivista, venha defender o legado de um dos maiores empresários portugueses dos últimos anos. Fazê-lo, aplaudir uma história de livre iniciativa, de ascensão pelo mérito, de radical independência do Estado, é que seria uma incompreensível incoerência.
Mas se o voto de pesar, ao contrário, é suposto ser “apenas” a tal manifestação de urbanidade, de respeito por qualquer vida que chega ao seu fim, então pergunto: que sentido faz votá-lo? É o PCP que erra ao tomar por político um gesto que se quer humanista, ou é a Assembleia da República que falha por considerar que o respeito pelo término de qualquer vida humana é coisa que se pode votar?
Reitero pois o que disse. A crítica falha o alvo. Ou um voto de pesar é um juízo político e ninguém pode pedir incoerência a um dos partidos comunistas mais ortodoxos da Europa. Ou um voto de pesar é o sublinhar do nosso respeito coletivo pela vida humana e é à Assembleia da República que deve assacar-se a ideia bizarra de sufragar o que é insufragável.
Tenho aliás para mim que, em toda esta história, talvez valha a pena olhar antes para o comportamento, francamente mais difícil de explicar, do Bloco de Esquerda. De facto, também aqui a ninguém passará pela cabeça que o Bloco se furte a um gesto de puro civismo e respeito. Não o digo com qualquer ironia. Só consigo admitir que o Bloco faça uma leitura eminentemente política destes votos de pesar. Uma leitura, aliás, em quase tudo semelhante à que terá feito o PCP. Mas é precisamente no quase que o Bloco se perde. Porque um juízo político que só podia, em coerência, ser cristalino, opta por fazer-se em tons de um inexplicável cinzento.
E cinzenta, parece-me pacífico afirmá-lo, é coisa que não terá sido nunca a vida de Belmiro.
(Artigo publicado na VISÃO 1292, de 7 de dezembro de 2017)