Não foi este o entendimento de muita gente que, nas redes sociais, tem mostrado alguma desilusão. De facto, o Model 3 que vai ser vendido nos primeiros meses não será a versão base anunciada, mas sim uma versão melhor equipada, com maior autonomia e… mais caro. Como vários clientes, que já reservaram o Model 3, têm indicado, o preço real desta versão facilmente ultrapassa os 50 mil dólares quando se adicionam extras como o Autopilot mais sofisticado e o tejadilho em vidro (um opcional que só pode ser adquirido num pack Premium que custa 5000 dólares).
Desilusões que só podem ser explicadas por expetativas irreais. Parece que há pessoas que esperavam um milagre. Algo como uma versão mais pequena de um Model S superequipado a um preço de um Volkswagen Golf. Ora, milagres não existem, apesar de Elon Musk já nos ter habituado a muitas surpresas – basta analisar como a Space X está a baixar consideravelmente o preço de explorar o Espaço. Mas, felizmente para a Tesla, entre as mais de 500 mil reservas já efetuadas do Model 3, são muitos o que têm usado as mesmas redes socias para mostrar quão entusiasmados estão com o seu futuro carro.
De forma realista, o Model 3 de 35 mil dólares, que em Portugal deverá ter um custo mais na casa dos 40 a 45 mil euros (há que somar impostos e outras taxas), não tem concorrentes à altura. Os carros elétricos com preço semelhante não oferecem nem a tecnologia nem a autonomia do Model 3 – já para não falar do design, mas esta característica é sempre discutível. Quanto aos automóveis convencionais, os concorrentes mais próximos em termos de dimensão e equipamento são, provavelmente, o BMW Série 3 e o Mercedes Classe C, que facilmente ultrapassam o preço anunciado para o Model 3 quando equipados com um motor que ofereça um desempenho similar (aceleração). E estes carros têm custos de utilização (combustível, manutenção, impostos de circulação…) muito superiores a um carro elétrico.
Muito mais pessoas vão poder aceder a um automóvel elétrico sofisticado devido a um preço de acesso mais baixo. Por tudo isto, o Model 3 é, de facto, um carro histórico, que vai obrigar a indústria a acelerar o passo para acompanhar – como, aliás, já tinha acontecido com o Model S.
Mas, pelo menos por cá, o Model 3 não vai ser um carro para todos. Não vai ser um Ford Model T que, por ser bem mais barato que todos os restantes carros familiares disponíveis na altura (início do século XX), conseguiu ser acessível até para as classes trabalhadoras dos Estados Unidos. Para o Model 3 poder ser comparado ao mítico modelo da Ford, o preço base teria de ser muito mais baixo.
O iPhone dos carros
A comparação com o iPhone é mais feliz. Um smartphone que conquistou meio mundo não por ser económico – nunca o foi –, mas por trazer uma nova forma de usar um telemóvel. Por oferecer uma experiência de utilização revolucionária a um preço, que apesar de elevado, não era inatingível. Mais importante, por proporcionar acesso a todo um ecossistema. E aqui entramos num outro erro habitual quando se fala dos carros da Tesla: analisá-los, simplesmente, como automóveis. Não são apenas carros, do mesmo modo que o iPhone não era apenas um telemóvel. A Tesla é uma marca de energia e de mobilidade. Em Portugal ainda não se percebeu muito esse conceito porque por cá ainda não há rede de supercarregadores nem a comercialização, pelo menos em grande escala, das soluções de produção e armazenamento de energia solar da Tesla. Mas os donos de Tesla sabem bem a que me refiro. Querem um exemplo? Visitem a página de Facebook Eagle One, que relata as experiências de mobilidade de um português cliente da Tesla. Este orgulhoso condutor de um Model S está de férias na Croácia depois de uma viagem de carro entre Portugal e aquele país a custo zero graças à rede Superchargers da Tesla (disponível a partir de Espanha). A ideia de percorrer grandes distâncias rapidamente, com custos baixíssimos e sem emissões é muito libertadora e, uma vez mais, revolucionária.
Este conceito de ecossistema também é evidente do modo como é possível aceder a serviços e atualizações diretamente a partir do carro. Que outra marca permite, por exemplo, aumentar a capacidade de aceleração, adquirir tecnologia de condução autónoma ou aumentar a capacidade da bateria com simples toques no ecrã tátil? A Tesla tem seguido uma política de atualizações única na indústria. O que também é evidente na produção. Elon Musk prefere adicionar a melhor tecnologia disponível no momento a todos os carros produzidos, deixando para os clientes a possibilidade de adquirir ou não essa tecnologia quando adquirem o carro, ou mais tarde através de simples atualizações remotas do software. É o que tem feito com o Autopilot, que também vai estar no Model 3, adicionando um custo de produção de alguns milhares de dólares: este é um sistema de hardware complexo, constituído por várias câmaras, sensores, radares e uma poderosa unidade de computação. Para garantir um melhor preço, Musk podia, simplesmente, optado por retirar esta tecnologia do Tesla mais barato de sempre. Mas esta decisão não respeitaria o ADN da marca.
Neste modelo de negócio, a Tesla parece considerar que é economicamente mais interessante incluir a tecnologia (hardware) em todos os carros, mesmo que não seja utilizada, do que criar muitas versões. Esta simplificação de produção faz sentido em séries de fabrico relativamente reduzidas, como é o caso dos Model S e Model X, mas pode ser um risco num modelo que a marca pretende produzir em larga escala. E é também por isto que a Tesla está a forçar as versões mais bem equipadas nesta fase inicial. Se boa parte dos clientes optasse pelo modelo base, é provável que a Tesla perdesse dinheiro na venda dos carros. Neste momento, é muito provável que a Tesla não se possa dar ao luxo de vender Model 3 de 35 mil dólares.
E aqui entra outro conceito associado ao Model 3: a concretização do primeiro “master plan” de Musk. O objetivo do empreendedor sempre foi começar por produzir, em pequenas quantidades, automóveis elétricos para um segmento elevado de modo a conseguir desenvolver a tecnologia e obter o investimento para criar um carro elétrico acessível. Pelas razões já indicadas, não me parece que o Model 3 seja, pelo menos para já, a concretização desse objetivo. Uma vez mais, Elon Musk terá sido demasiado otimista nos seus planos, mas é esta característica que faz dele o empreendedor que está a conseguir, como poucos na história, mudar o mundo.
Voltando à comparação com o iPhone, a produção de um carro é muito mais complexa que a produção de um smartphone. A Tesla não pode, simplesmente, contactar um fabricante chinês e pedir a produção de um milhão de Model 3 em dois meses. A marca norte-americana tem de investir em fábricas, criar uma rede de pós-venda, gerir milhares de referências de peças e fornecedores…
A Tesla vai conseguir?
Neste momento decorre um género de guerra-fria entre os grandes fabricantes tradicionais e a Tesla. As marcas tradicionais desdenham a capacidade de produção, distribuição e pós-venda da marca californiana. O que me faz lembrar o que alguns executivos da Nokia e da Blackberry – só para citar alguns – diziam aos jornalistas do iPhone… E todos sabemos como isso correu. Musk tem conseguido provar que é capaz de concretizar os seus objetivos, por mais difíceis que pareçam ser, embora muitas vezes demorem bem mais tempo a ser atingidos que o idealizado pelo sul-africano.
Mas não deixa de ser verdade que o Model 3 é um grande risco para Musk. Mais um entre os muitos que este empreendedor já enfrentou. É possível até que seja um dos grandes da indústria a concretizar o sonho do empreendedor em produzir um automóvel elétrico verdadeiramente popular. O próximo pretendente a este título é o novo Nissan Leaf, que deverá ser apresentado no início de setembro e, provavelmente, chegar ao mercado europeu já nos primeiros meses de 2018 – bem antes do Model 3. Mas uma coisa é certa: sem a Tesla, nem estaríamos a discutir a popularização dos automóveis elétricos. Corra muito bem ou muito mal, o Model 3 já está a mudar o mundo.