Quando eu era pequeno, ali em meados dos anos 80, era relativamente aceitável atirar um papel para o chão. Volta e meia voavam maços vazios de português suave de janelas de citrones cx. Viam-se caixas vazias de yoggis nas bermas das estradas. Não era a conduta mais cavalheiresca de se ter no espaço público, mas não era o fim do mundo. Uma pessoa caminhava sobre terreno minado de latas putrefactas de atum bom petisco e garrafas de spur cola. Portugal era muito mais porco nessa altura. Havia menos civismo. Eu passava as férias de verão numa casa de praia em Ofir, que ficava numa duna enorme, e no cimo dessa duna gigante ficava uma capela, a capela da Bonança. Aquilo era lindo. Uma duna cheia de vegetação com uma capela em cima. Aquilo era (ainda é) uma coisa maravilhosa. Andava- -se por lá de cavalo. Durante o mês de agosto uma quantidade grande de pessoas ia para lá acampar. No fim do mês o monte da Bonança ficava cravejado a latas de atum, garrafas de cerveja cristal, plásticos, papel, alumínio, esterqueira da mais variada espécie. Era normal. Não era agradável, mas era uma fatalidade. Não era compreensível sequer, mas era uma inevitabilidade com a qual uma pessoa tinha que viver. Aquilo depois acabava por ser limpo em setembro. Hoje não é assim. Há multas. Há uma pressão social que empurra as pessoas para o civismo. A poluição é unanimemente considerada uma coisa ruim. E ainda bem. Este mundo tem uma subtil e impercetível inclinação para se ir melhorando a ele próprio, sem que uma pessoa chegue a ter tempo para dar valor. Mas não é difícil uma pessoa lembrar-se desses tempos e pensar o quão mais raro se tornou ver lixo no chão. Mais raro ainda é ver alguém a atirar um papel para o chão. Quem fizer uma coisa dessas incorre numa infração que pode ser punida com dura sentença: a da exclusão social. E a vontade de inclusão é uma coisa natural em todos nós, de uma forma ou de outra. E isto para dizer o quê: as opiniões atiradas para o espaço público são também poluição. As opiniões arremessadas a esmo nas redes sociais sem que ninguém as tenha pedido são as novas latas de Ovomaltine a sobrecarregar a natureza na berma de uma estrada nacional. Vomitar verdades absolutas sobre este ou aquele assunto de importância nacional, ruminar de boca aberta o pasto da indignação automática e coletiva, aspergir viperinas sentenças, são tudo gestos cada vez mais tidos como grosseiros. É como atirar papel para o chão. Se todos vazarem os seus detritos sem qualquer consideração pelo bem estar comum, o mundo transforma-se na duna da Bonança no final de agosto. Se todos vociferarem as suas sentenças automáticas, o mundo piora. Há casamentos que se desfazem, pessoas que perdem o emprego. Há pessoas que sofrem. Na maior parte das vezes, injustamente. Aquele impulso de expetorar a primeira opinião que vem à cabeça, muitas vezes formatada por uma onda de indignação que vem de trás, é uma coisa horrorosa e que faz vítimas todos os dias. Mas como este mundo tem a tal inclinação para o auto-ajuste, já se vislumbram sinais de optimismo. Nas conversas no mundo cá fora já se criticam os opinantes de redes sociais. Já se começa a considerar aquele que dá a sua opinião sem que ninguém a tenha pedido como a pessoa ridícula que é. Opinar em todas as direções já começa a ser tido como algo de patético, risível, grosseiro e nocivo. O facebook, que parece mais atreito a este tipo de manifestação, parece estar a perder alguma da clientela cool. Já é considerado fixe migrar para um muito mais pacífico instagram, onde é só flores, paz, amor e refeições saudáveis de quinoa e abacate. E os opinantes crónicos, os indignados automáticos, os paladinos da justiça devida, vão se auto-encurralando, até que só há de sobrar um, como o bêbado da aldeia que cambaleia sozinho a esbaforir de indignação o seu azedume de si para si.
(Crónica publicada na VISÃO 1271, de 13 de julho de 2017)