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Quando os meus primos me vieram arregimentar para a banda-clone da banda dos pais deles, atribuíram- -me o baixo. Eu nunca tinha ouvido falar de tal instrumento. Nenhum de nós sabia ainda tocar. Eles tinham 13, 14 anos. Como eu era o mais novo (tinha 11) ia para o baixo. Era eu o gordo que vai à baliza. Nós tentávamos fazer versões de versões. A coisa chegava- -nos já bastante depurada pelas versões dos êxitos dos anos 60 e 70 dos meus tios. E era dessas versões que nós fazíamos as nossas, já bastante aviltadas, com as arestas bastante limadas pela nossa óbvia e expectável inaptidão musical. O meu primo pipas era o vocalista e sacava as letras de ouvido pelas gravações em cassete do pai dele a cantar, que as tinha sacado de ouvido 20 e tal anos antes. Era como traduzir do sânscrito ou do hebraico.
Então o meu tio Sérgio desenhou-me um esquema que explicava onde é que se punha os dedos, que do Si para o Dó e do Mi para o Fá só andava um espacinho no braço do baixo, nas outras notas andava dois espacinhos, explicava como é que se afinava, que nota é que correspondia a cada corda solta. Mi-lá-ré-sol. Foi num dia qualquer ao almoço. Foi a minha primeira (e única) aula de música. Ainda tenho essa folha guardada com os desenhos, bolinhas a marcador vermelho nos sítios onde eu tinha que pôr os dedos. Cada vez que meto os dedos num instrumento qualquer, essa informação secreta ainda é a minha referência. Esse papel, duas folhas A5 pautadas, já meio amareladas dos últimos quase 30 anos, é a pedra angular de todo o meu entendimento musical. E depois era malhar. Sultans of Swing, Like a Rolling Stone, Please Don’t Let Me Be Misunderstood, Wonderful Tonight. Dali até termos concerto agendado no salão de festas da paróquia de Cristo-Rei foi um tirinho. Lembro-me de tudo desse dia. Da noite em branco. Do almoço com a família toda na Proa, em Matosinhos. De não comer. Das nossas mães a dizer que tínhamos que ir de blazer. (Blazers de botões dourados e gravatas com brasões). De ficar com febre por causa do terror. Das cólicas horrorosas. De me arrepender profundamente de ter alinhado naquela ideia estapafúrdia. Antes de entrar em palco, arrependo-me sempre. Durante os 20 e tal anos seguintes havia de me arrepender um milhão de vezes de alinhar constantemente na ideia insana de ir para um palco com toda a gente a olhar. É um sofrimento com o qual só quem for extremamente acanhado poderá empatizar. Eu, que sou medroso, mais de dizer não do que de dizer sim, fui alinhando sempre. Sempre. Não sei explicar porquê. Não existe ninguém menos aventureiro do que eu. Será vocação? Talvez uma vocação seja exatamente isso: aquela coisa, aquela tarefa na vida pela qual uma pessoa está disposta a aguentar todos as torturas. Aguentar até a mais tortuosa das agressões, que é a de torcer a própria natureza. O observador tornar-se no observado. Meses antes da música, os meus primos e eu andávamos de patins com uns tacos manhosos a mandar bordoadas numas bolas pesadíssimas, no pátio de cimento de casa da nossa avó. Foi a fase do hóquei. Já tinha havia a fase dos skates. Dos carros telecomandados. Da Playmobil. Eram tudo fases, e esta da música seria só mais uma fase. E acabou por ser. As guitarras dos meus primos acabaram descontinuadas, ao pé do forte dos caubóis da Playmobil. Mas a minha não. Há coisa de um mês toquei num festival de guitarristas em Oeiras. Tinha o António Chainho no cartaz. O Chainho que tocava com a Amália. Acho que foi a primeira que alguém que elevou ao estatuto de colega do Eric Clapton. Uma vez, numa viagem (acho que da escola), numa fonte qualquer, num sítio qualquer onde há daquelas fontes onde se atiram moedas e se pedem desejos, quando chegou a minha vez, não me ocorreu senão o meu único e óbvio desejo. Foi fácil, porque eu não tinha outro. Nunca na vida tive outro. Nunca tinha tido outro, nunca voltei a ter. Atirei a tal moeda e disse de mim para mim (nunca contei a ninguém – não se deve): “ser guitarrista”
(Crónica publicada na VISÃO 1261, de 4 de maio de 2017)