São receções tão calorosas que dificilmente se conseguem traduzir por palavras. Em cada abraço coletivo que recebo, num trajecto entre o carro e o auditório onde irá decorrer a palestra, aumenta a minha vontade de partilhar mas também a minha responsabilidade.
É preciso cativar, é preciso fazer com que durante duas horas os estímulos dos telemóveis sejam adormecidos, é preciso deixar efetivamente uma semente que cresça em prol dos Direitos Humanos, é preciso que sintam à vontade para colocar questões, dúvidas, anseios, curiosidades, é preciso quebrar a eventual distância entre a figura pública e o aluno, é preciso adoptar uma linguagem inclusiva, não paternalista nem moralista, é preciso dar exemplos concretos, é preciso estar atento a cada sinal que venha da plateia, é preciso ter o radar ligado também na direção dos professores e professoras que terão o papel e o poder de regar a semente. E, no final de cada sessão, é preciso criar condições para pequenos e intensos momentos individuais.
Aceitei o convite de dez escolas, do Centro e Norte do país, e em março fui visitá-los para lhes falar do mundo e das suas desigualdades, dos direitos, do voluntariado, da cidadania. Expliquei-lhes a minha missão enquanto Embaixadora de Boa Vontade do UNFPA, o trabalho da Associação Corações com Coroa, e mergulhámos em algumas das vivências descritas no meu livro “O que vejo e não esqueço”. Mas também abordámos muitas outras questões que dizem respeito a todos e todas, e aos jovens em particular. Bloqueei uma semana na minha agenda, peguei no carro e fui estrada fora para uma das experiências mais bonitas que vivi em Portugal.
Há sempre uma professora ou um professor responsável por estes encontros. É aquela pessoa que envia incessantemente e-mails a insistir no convite e a enumerar uma lista de argumentos que me fazem acreditar que, de facto, é necessária e produtiva esta partilha. São os chamados professores teimosos que encaram a profissão como uma missão, que não largam o osso, que fazem acontecer. São estes e estas que ficam a habitar para sempre na nossa memória e, muitos, no coração. Que nos mostram, a nós, alunos, que contamos, que somos importantes. E a mim, agente de serviço público (como gosto de me entender), que posso fazer com que aquela manhã ou tarde tenha repercussões positivas nas vidas dos jovens mas também na sociedade. É desejar muito, eu sei. Mas o retorno que tive, naqueles pequenos momentos intensos e individuais no final de cada palestra, e as mensagens que recebi mais tarde, de alunos e professores, não me deixaram com dúvidas: todos ganhámos mesmo! A ouvirem-me, estiveram turmas do 5º ao 12º anos de escolas públicas e colégios privados, necessariamente com desafios diferentes.
Agradeço a confiança, o carinho, a disponibilidade e a sinceridade. Houve alunos que me confessaram, quase no final da minha apresentação: “Desculpa Catarina, mas confesso que vim ouvir a sessão para me poder baldar à aula X mas agora quero dizer-te que estas duas horas valeram por muitas aulas”. É extremamente enriquecedor ouvir isto – e espero que seja entendido da forma correta. Não faço desta crónica um auto elogio, longe disso, apenas partilho a alegria de ter constatado que jovens de diferentes enquadramentos sociais têm vontade, se estimulados, de contribuir para uma sociedade mais igualitária, justa, solidária. De encontrarem o seu caminho.
Renovei as minhas energias. E aprendi. Muito. Falámos de temas que provocam nós na garganta: o bullying, a violência no namoro, os preconceitos, as orientações sexuais, as famílias, o planeamento familiar, os sonhos.
Claramente fiquei com uma triste certeza: os jovens de hoje têm os sonhos amarrados, condicionados pela pressão económica, pelos olhares preocupados dos progenitores.
“Catarina, por favor, aconselhe-me! O que devo fazer? Quero muito ser jornalista, mas todas as pessoas dizem que sou louca porque só me irá restar o desemprego!” A mim não me amarrotaram assim os sonhos. Claro que os aconselhei a seguirem os seus desejos, já que a adolescência é a altura ideal para lhes dar forma.
Assustaram-me as razões apontadas para a existência e aumento da violência dentro do contexto escolar, questões materiais em primeiro lugar. Quando o rapaz ou a rapariga X não tem o telemóvel da gama Y ou a roupa com a marca Z, mesmo nas localidades mais pobres. E os preconceitos baseados nas orientações sexuais e que dão origem a um bullying insustentável. Os rapazes gays são sempre as maiores vítimas. Apesar da homossexualidade ser falada abertamente cada vez mais, é ainda hoje motivo de uma imensa discriminação. Nas raparigas isso não acontece. São mais aceites, não se leva realmente a sério o ser-se lésbica. É, de uma maneira geral, encarada como uma fase e os rapazes até acham alguma piada, faz parte das suas fantasias. O que também provoca nessas raparigas um sentimento de desrespeito pelos seus direitos.
Constatei o quão perdidos estão alguns jovens em relação ao papel que podem ter na sociedade, já que existe uma gigante contradição entre a avalanche imediata de informação sobre o mundo que lhes chega através das redes sociais e dos media e uma espécie de paralisação no que diz respeito à ação. Como trabalhar a informação que vão recebendo? Ou será que a informação a que querem ter acesso é tão superficial que não chega para lhes fazer o clique? Informação é poder, repeti-lhes muitas vezes ao partilhar casos reais que documentei nas séries televisivas Príncipes do Nada.
Muitas vezes, a vontade de exercer uma cidadania mais ativa surge de uma introspeção, um olhar para dentro depois de se ter visto, lido e sabido algo. Nesses casos, somos levados a pensar: “E se eu tivesse nascido num outro local, com outras condições de vida?” Tentei mostrar-lhes o quão importante é pensar nestas questões, porque estes pensamentos podem ser uma ferramenta essencial para decidir de que forma é que nos queremos envolver com o mundo à nossa volta.
O primeiro passo para que se realize o nosso potencial enquanto cidadãos e cidadãs é precisamente conhecermos os nossos direitos. O passo seguinte será o compromisso em batalhar para que todas as pessoas possam ter acesso a todos os seus direitos. E esta batalha, que pode ser travada através do voluntariado, ou mesmo através de conversas com amigos e amigas sobre a realidade da escola, da família, do país e do mundo, é o que nos vai definir enquanto cidadãs e cidadãos ativos.
Os Direitos Humanos são universais, inalienáveis e indivisíveis. Tal significa que se aplicam a todas as pessoas sem exceção, que nunca lhes podem ser retirados seja qual for a razão e que não se pode preferir um direito sobre o outro.
Neste ponto, achei que seria importante desenhar-lhes a distinção entre o que é solidariedade e o que é caridade. Enquanto o conceito de caridade se refere a uma situação em que uma pessoa presta auxílio a outra por ter compaixão e de uma forma imediata, a solidariedade já remete para um contexto em que uma pessoa apoia outra com o intuito de lhe dar melhores condições de vida, não só no imediato mas também no futuro. Ou seja, enquanto a caridade é um conceito vertical, a solidariedade é um conceito horizontal. Esmiuçar estes significados e elevar a palavra Dignidade ao seu merecido trono foi um desafio muito interessante nas minhas visitas às escolas.
Relatei os casos que conheci pessoalmente, pelo mundo fora, de rapazes e raparigas em idade escolar que se viram forçados a abandonar o sistema de ensino formal. Eles porque são obrigados a trabalhar desde muito cedo para o sustento das suas famílias; e como em muitos países as escolas são poucas e o ensino não é gratuito, a escolarização não é vista como uma possibilidade. As raparigas porque são vítimas de várias formas de discriminação; devido a uma desigualdade de género muito enraizada, não são tidas como merecedoras de ir à escola, não tendo hipótese de sonharem com alguma perspectiva de futuro para além de tomarem conta da família. Em muitos países, acontece também que as propinas são mais caras para as raparigas do que para os rapazes. É o desvalor das raparigas. Além disso, muitas delas têm de abandonar a escola por serem forçadas a casar muito cedo, com homens de 60 ou 70 anos, muitas vezes de outras regiões.
Para medir o sucesso de cada intervenção, foi fundamental eu sentir que a plateia ganhou alguma consciência da importância do direito à Educação, um direito humano e uma ferramenta essencial para o desenvolvimento. E do privilégio que é de facto poder frequentar uma escola.
Sou assaltada por um desejo forte de ver implementada uma disciplina que englobasse todas estas questões que aqui mencionei, qualquer coisa como Educação para os Direitos Humanos, Cidadania e Igualdade, com um capítulo sobre Empatia. A relativização das dificuldades é sempre uma boa forma de repensar a vida e de abastecer energia para a determinação.
Aproveito esta crónica para deixar um abraço esticado (acredito que os afectos são construtivos e curativos) a todos e a todas: alunos, professores, auxiliares, encarregados de educação, que me receberam no Colégio Maristas (de Carcavelos), na Escola Secundária de Santo André (Barreiro), na Escola Básica 2,3 Luís Sttau Monteiro (Loures), no Colégio Miramar (Ericeira), no Colégio Paulo VI (Gondomar), na Escola Básica e Secundária Matilde Rosa Araújo (Cascais), na Escola Secundária Felismina Alcântara (Mangualde), na Escola Secundária de Cinfães, no Colégio D. Diogo de Sousa (Braga) e na Escola Básica Aver-o-mar (Póvoa de Varzim).
Obrigada! Os Direitos Humanos não têm fronteiras