Após cinco anos de emigração, confrontei-me com uma nova consequência – ou fase, espero – deste fenómeno. A perda de amigos. Aqueles para sempre. E antes de mergulharmos em desculpas como: “então é porque nunca foram amigos”, tentemos perceber.
Às vezes, entre o branco e o preto existem milhares de outras cores, que tornam os processos das relações muito complexos.
Como já tive oportunidade de escrever por aqui, com o pouco tempo que temos para ir a casa, principalmente aquele emigrante que vive num fuso horário de 8, 9 ou 10 horas de diferença, faz-se uma seleção natural de onde e a quem queremos dedicar esse tempo.
Certo é que muitas relações esfriam ou até desaparecem por completo do nosso mapa. É natural. Deixamos de nos cruzar no café, na rua, lá pelo bairro. Embora muitas vezes até nos tenha parecido que éramos amigos com alguma intimidade, não negamos que ao longe essas relações deixam de fazer sentido. Faz parte.
Mas este texto fala dos amigos. Os mesmo muito amigos. Os que nos conhecem no pior e no melhor. Aqueles com quem partilhámos momentos muito nossos. Aqueles com quem achámos ter relações inabaláveis.
Ter relações à distância implica esforços redobrados. Implica uma dedicação que possivelmente nunca nos foi exigida anteriormente. Pelo menos com aquela pessoa. E em fusos tão diferentes, as coisas complicam um pouco mais.
A internet veio facilitar o nosso trabalho. Estamos à distância de um click, de uma mensagem, de uma fotografia. O Instagram, as suas stories, e o Facebook, iludem-nos numa proximidade utópica. Conhecemos partes do dia da pessoa, fotografias da moldura lá de casa ou do novo cadeirão. Os sapatos que a Rita comprou ontem também são giríssimos. O Rodrigo e a Sara estão no Alentejo, é sempre tão bom. A MJ foi pedida em casamento. Que alegria!
Quase que nos achamos ali. Nas compras, no Alentejo ao sol, sentados no novo cadeirão. No abraço de parabéns. Na partilha da felicidade. Mas somos tal e qual fantasmas. Ninguém nos vê.
Ao fim de cinco anos, com a quase inexistente esperança do lado de Portugal no meu regresso, vejo pessoas que amo muito, ao longe. Tão ao longe que começo a ter dificuldades em lembrar-lhe os traços, o cheiro e as expressões.
E se me perguntarem o que aconteceu eu direi “nada”. Mas aconteceu. Aconteceu que estamos tão envolvidos nas rotinas, nos obstáculos e aventuras diárias que nos fomos esquecendo do mais importante. Ser presente. Aconteceu que não devolver a chamada uma, duas ou três vezes, porque “agora não posso”, “agora não é boa altura”, ou “ligo mais tarde” foi abrindo uma fenda entre nós que só tem tendência a aumentar. Aconteceu que não pegar no telemóvel para mandar um “olá”, um “está tudo bem” ou “vamos marcar um Skype”, mesmo quando do outro lado é madrugada, noite ou final do dia, afastou-nos. Aconteceu que assumirmo-nos como garantidos não dá bom resultado e quando damos por nós já não nos falamos há meses, quase há um ano! Quando damos por nós a amiga está grávida, o João namora com uma miúda impecável há um bom par de meses, a Sara defendeu a tese, mas achávamos nós que ela só a tinha começado agora. O Tiago já não vive em Braga, mudou-se para Lisboa no final do ano passado. E a Sandra mudou duas vezes de emprego! Aconteceu que alguém esteve doente e nós nada soubemos. Porque não ligámos ou porque alguém não achou importante contar-nos e por isso também não ligou. Aconteceram tantas coisas que nos momentos nos parecem tão pequenas, tão pouco importantes, mas que numa soma são elas que contam a nossa história. São elas os pequenos pedaços de nós. Em história. São aquilo que somos hoje.
Algures nestes cinco anos, talvez me tenha esquecido disto tudo. Talvez não tenha telefonado quantas vezes deveria, talvez não tenha recebido tantas chamadas quanto as que queria. Talvez não tenha – logo eu – demonstrado mais vezes o amor e respeito. Talvez do outro lado se tenham esquecido do mesmo.
A ilusão de que as pessoas não precisam de estar sempre a falar, isola-nos. Não precisamos de falar todos os dias, é facto. Mas precisamos de existir na vida do outro. Mesmo longe. Precisamos de ser lembrados do quanto gostamos delas. O quanto elas gostam de nós. Precisamos da cumplicidade, dos projectos para o futuro. As pessoas precisam sempre de amor. Sempre.
E antes que só nos reste a saudade e a memória de outros tempos, liguemos. Quantas vezes forem necessárias. Façamos esse esforço de, na hora de almoço, pegar no telemóvel, mandar uma mensagem naqueles dois minutos da secretária à casa de banho, na pausa para o cigarro. Que sempre que possamos, mesmo quando não possamos, o outro saiba que pensamos nele, que lhe queremos o melhor do mundo e que estamos com ele no coração. Cá, lá, onde quer que cada um de nós esteja. E aquando do nosso reencontro, que o entusiasmo encha a casa, que as perguntas, mesmo que repetidas sejam feitas, que não haja pressas porque amanhã se acorda cedo, porque hoje não é um bom dia, porque nunca se tem tempo. Nunca teremos. Nunca teremos o tempo que queremos ter. Aceitar essa realidade ajuda-nos a abandonar o lamento e a aproveitar todos os minutos. O tempo que nos é possível.
Que antes que só nos reste a saudade, possamos pedir desculpa e perdoar. As más comunicações, interpretações e mal-entendidos. Que nos possamos perdoar por nos assumirmos como garantidos. Afinal de contas, conhecemo-nos melhor do que ninguém.
Que antes que só nos reste a memória, que haja um “gosto tanto de ti”, um abraço que apazigua, que faz valer todo o tempo de espera. E que nunca exista um adeus, porque se somos fantasmas, então teremos a capacidade de estar em qualquer lugar a qualquer hora.
Nem que seja através de um ecrã.