
Foi como um soco no estômago, daqueles que doem a valer quando os abdominais estão completamente distraídos. Numa altura de crise na redacção da rádio da ONU no Haiti, não esperava que ele, Parnel Beauvoir, o elemento mais velho da minha equipa, anunciasse à frente de todos os outros jornalistas que iria de férias, quando, eu já lhe tinha dito que não poderia fazê-lo nessa altura.
Poderia ser apenas um pormenor administrativo, uma questão laboral, uma infeliz planificação. Mas não naquelas circunstâncias. E não com o Parnel. Ele, o mais velho dos cinco da equipa, antigo director de uma escola em Les Cayes, cidade do sul do Haiti e que saía todas as sextas mais cedo, à uma da tarde, para regressar à cidade natal (eu fechava o olho ao cumprimento do horário de trabalho e piscava-lhe o outro, desejando-lhe bom fim-de-semana). Como podia não o deixar sair mais cedo para uma viagem de carro de quatro horas pela frente? Em Les Cayes, tinha a mulher, três filhos (o quarto morreu em Agosto passado, poucas horas depois de nascer), um sobrinho órfão, e umas outras três crianças que, no Haiti, são conhecidas por ‘restavek’ (rester avec, ficar com). A domesticidade infantil afecta mais de 200 mil crianças no país. Escravatura moderna também lhe chamam. Não para o Parnel. Sempre jurou a pés juntos que na sua casa, todas as crianças, as suas e as dos outros, tinham as mesmas tarefas e todos iam a escola. Não tenho a menor dúvida.

Voltando ao soco, como foi possível não respeitar o que lhe tinha dito? E à frente de todos os outros? Ele, a quem eu recorria para advertir os restantes quatro membros da equipa (quando eu sozinha nem sempre dava conta do recado), o mais respeitado por todos e que nunca se zangava, a não ser quando o seu carregador do telemóvel desaparecia (mas que ele insistia em deixá-lo na redacção, quando sabia tratar-se de um objecto apetecível no seio de uma equipa pouco organizada e muito esquecida). Ele, que me tinha esperado à entrada de Les Cayes, na primeira vez que conduzi para fora da capital e que me recebeu a mim e aos restantes passageiros com bebidas e que, às escondidas, pagou a um haitiano para tomar conta do meu carro e dar-lhe uma ensaboadela. Ele que se lamentava sempre que eu me ausentava para fora do país (bem, não sei se era por minha causa, ou por saber que a minha substituta liderava com chicote).
A questão das ditas férias foi resolvida com uma reunião extraordinária de equipa. Pela primeira vez, coloquei o fato de supervisora, juntei os cinco e anunciei que, a partir desse dia, estavam extintas as minhas regras-com-excesso-de-flexibilidade. Entravam em vigor as regras oficiais da rádio ONU. Parnel, mais uma vez, falou por todos, e por si. Com a calma e a sabedoria de sempre. Aquele que parecia um ponto de ruptura com a equipa, não foi mais do que um dia nublado. Parnel acabou por decidir não ir de férias, eu acabei por recuperar as regras-com-excesso-de-flexibilidade. Na sexta-feira seguinte, como era nossa tradição, Parnel saiu mais cedo para Les Cayes e eu pisquei-lhe o olho.
Mas tudo isto foi passado. Foi em Dezembro [de 2009], lá por alturas do Natal. Parnel Beauvoir, o meu jornalista (e hoje deixo de lado qualquer modéstia, abusando do pronome possessivo), morreu no dia 12 de Janeiro [de 2010]. Estava a cortar o cabelo na barbearia de sempre, durante o horário de trabalho, quando o terramoto abanou o Haiti. Se ao menos eu não tivesse o hábito de o deixar sair mais cedo da redacção…
Ah! O carregador não se perdeu nas ruínas da sede da ONU, que também ruiu com o terramoto, naquele que é um dos maiores desastres naturais do século XXI. A Naomie, elemento feminino da equipa, apercebeu-se esta semana que tinha um carregador na carteira. Lá estava o autocolante resistente à guerra, com o nome: BEAUVOIR (Parnel). O Parnel bem sabia a equipa que tinha. Rimos. O mundo pode cair, mas há coisas que nunca mudam. Ainda bem.
Nove anos depois, ainda há coisas que nunca mudam. Como se tivesse sido hoje.