Nos primeiros dias de Outubro:
Contradizendo a latitude, é Outubro e lá fora está mesmo domingo com uma brisa de temperatura idiosincraticamente amena que agita a cortina branca na janela entreaberta, um primeiro plano de artefacto de vida sobre um fundo de montanhas e mar. A médio plano vê-se uma árvore outonal, as folhas a tender festivamente para o vermelho. Nos fjords, o solo é pobre, raro, e os Invernos frios e violentos – Outono é aceitar que as árvores se dedicam amorosamente a reciclar a clorofila para sobreviver ao interregno sazonal imposto pela meteorologia; também elas, as árvores, preocupadas com o silêncio abafado da neve que vem aí. A antocianina torna as folhas sanguíneas; o vermelho remete para a vida quando na realidade prenuncia a sua queda e morte. Agrada-me a incongruência. O vento cobre este quadro com um tecido sonoro complexo – o fjord está calado e a pensar na vida, mas o vento nas folhas imita o marulhar da maré, ouve-se o silvo estúpido dos pneus na estrada encharcada que nos separa do mar e, a sublinhar o domingo, rompe uma tirada de sinos a chamar para uma missa que continuo a recusar, embora a aceite como marca indelével neste dia dito santo, e em todos os outros dias ditos santos e sanguíneos espalhados pela minha memória e pelo mundo. Sobre a mesa estão dois fósforos por acender, cruzados um sobre o outro como se cruzam as pernas durante uma conversa inesperadamente interessante. O vidro grosso de um copo de água semi-cheio deforma a mancha de luz que o sol outonal atira sala adentro. Não sei onde está o meu cão, os meus filhos estão ambos a dormir em casa de amigos, sobre a cadeira mais confortável da sala estão dois quadros de um pintor de quem gosto mais da obra que do autor. Não sei nada, não sei de nada. É como se não tivesse nunca lido parábolas. Procuro no google o verdadeiro significado de fenómeno. É irrefutavelmente domingo.
Nos últimos dias de Outubro: