Desde muito pequena que faço um jogo comigo mesma. Nasci e cresci rodeada de irmãos, mas ainda assim, insistia nestes momentos só meus. Tinha dois favoritos. O primeiro era o Jogo das Vidas. Em termos muito simples, para não vos fazer perder tempo, eu, a única participante do jogo, sempre que passava por uma casa com uma janela aberta tinha de espreitar, tentar sentir o cheiro e de preferência decorar todo o espaço. Quantos quadros, quantas cadeiras, quantos livros. Tudo. No fim, tinha de criar histórias. Uma família ou alguém solitário. Histórias felizes ou tristes, dependendo do estado de espírito. Lá ia eu, até ao meu destino fazendo e refazendo famílias e vidas. O segundo jogo era o Jogo das Cores e Géneros, que consistia em atribuir uma cor a cada pessoa que conhecesse e um género a países, cidades, casas ou livros.
Não sei o que isto poderá querer dizer sobre mim, mas não nego a minha realidade, ainda hoje perco horas neste último. Tenho pessoas na minha vida amarelas, daquelas que brilham, que se vêem lá ao longe, já a iluminar tudo e todos por onde passam. Há as verdes, mais calmas, mais tranquilas, mas de sorriso aberto. Há as azuis. Meias chatas, que reclamam de tudo e todos. Há as castanhas, que estão sempre certas e só os outros é que erram. Há as cinzentas. Só isto. Cinzentas.
Lá por casa, os meus livros têm género. Calma, activistas. No meu jogo existe a possibilidade de algo sem género. O livro “No Teu Deserto”, de Miguel Sousa Tavares é claramente uma mulher. Poderosíssima. Mas o Rio das Flores é um homem. Indeciso, culto, meio azul.
As cidades por onde passei também assumem géneros. Cores. Formas. Sabores e cheiros. Florença é das mulheres mais delicadas que vi. Bela, belíssima. Paris uma mulher que dorme durante o dia. Nunca acorda antes das quatro da tarde. Praga, um homem de gabardina, preta e molhada com os grossos pingos da chuva fria. Porto, um homem sério, feitio carregado. Bali é homem com características divinas. Lisboa, não têm género, tem forma de braços e é amarela. Recebe todos, trata todos bem e abraça-os como quem acabou de receber amigos em casa.
No meu jogo, também Macau tem um cheiro, uma cor e um género. Aos meus olhos, Macau é menina mulher. Nova. Bem nova. Vivida. Macau é sempre ela. Irreverente. Durante o dia, a Macau, tem cabelos longos e despenteados que lhe deixam um ar cinzento para os outros, aqueles que a veem do lado de fora. Cabelos que tapam e protegem quem aqui mora. Cá dentro, há cores por todo o lado. Os vermelhos garridos, os amarelos que espreitam entre prédios, os verdes que se encostam à parede para ver os outros passar. Os castanhos, mais escondidos. E os roxos… esses destemidos, esses incrivelmente corajosos.
Esta menina mulher tem cheiro. Cheira a mar em dias de sol. Cheira a algodão quando chove e a terra seca e bem castanha em dias húmidos. Cheira a pessoas. Macau cheira sempre a pessoas. Macau cheira a sinfonias. Pianos, violinos, tambores, trompetes. Um ruidoso trompete em dias quentes, um piano meigo e leve em dias de brisa.
À noite, a Macau maquilha-se, perfuma-se com uma colónia forte e quase enjoativa. Coloca os brincos grandes e de pérolas falsas que cintilam ao som das luzes que a iluminam. Bebe whisky e cheira a charutos. Dança e seduz. Até o dia nascer. É mulher de vícios. Dona de si. Livre e feliz.
Quando adormece, Macau é menina mulher intensa, que teima em não crescer. Faz-se de distraída como quem não nos quer ver. É dona de todos nós. Não ouve, não fala. Vive. Vive a sua verdade. Viver em Macau é saber que é ela que manda. É ela que decide onde e quando. Viver com a Macau é viver solto, até quando ela quiser.