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Todas as manhãs, poucos minutos antes das 8, percorro o mesmo caminho, através do nosso bairro, que une a nossa casa à escola e infantário dos nossos filhos. Seguimos todos juntos, eu e a minha mulher de bicicleta, eles de trotinete, esses 500 metros, e normalmente vou sempre concentrado a ver se os putos não se atiram à maluca para o meio da estrada, se não atropelam ninguém, e se não ficam para trás.
A parte mais crítica é atravessar a Pallaswiesenstrasse, que apesar de ter limite de velocidade de 30, está sempre cheia de trânsito. Depois continuamos pela Viktoriastrasse, e logo ali, em frente ao número 64 deparo-me sempre com o primeiro memorial. Dificilmente consigo evitar olhar. É algo compulsivo.
Estou a falar de 3 pequenas placas em bronze, encrustadas no chão, em frente ao 64, porque era ali que moravam as pessoas que o memorial relembra. Já não moram. Desde há mais de 70 anos. E a razão porque não moram é certamente macabra: O pai, Richard Adler, a mãe, Irma Adler, e o jovem Herbert foram deportados para Auschwitz entre 1942 e 1944.
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As placas não contam muito, mas o suficiente para imaginar-lhes uma história. Richard Adler (o seu apelido significa Águia) nascido em 1888, teria 26 anos quando a Primeira Guerra Mundial estalou. Sendo jovem e saudável, possivelmente de boa família, terá sido recrutado, e servido na guerra como oficial. Terá possivelmente visto combate feroz. Trincheiras lamacentas. Bombardeamentos. Violência e muito sangue. Possivelmente foi ferido e nalgum hospital de campanha conheceu Irma, o seu nome faz pensar numa enfermeira voluntária. O seu apelido de solteira é Ehrlich (significa Honesta). Ela era dez anos mais nova, inteligente, educada, caridosa. Começam a namorar. Quando a guerra termina e o Exército o liberta das suas obrigações patrióticas, decidem casar. Richard trabalha como administrador numa firma de família. Os pais de Irma deixam-lhe o apartamento da Viktoriastrasse, num belíssimo prédio da época Vitoriana construída uns 30 anos antes e ainda no seu esplendor. O bairro é relativamente novo, e a rua, uma das mais belas da cidade. O apartamento tem belas mobílias de inspiração Jugendstil. Após vários anos a tentar, finalmente, em 1927 nasce-lhes o único filho, a quem chamam Herbert, o nome do avô paterno. A família está feliz.
Em Janeiro de 1933 Hitler assume o poder e a família Adler, de origem Judaica, começa a sentir os efeitos da segregação, e em 1934, no mesmo dia em que perde o emprego que tinha na firma (por ser Judeu), e após um incidente em que é vitima de agressão na rua, e com grande pesar no coração, o pai Richard, com grande sentido de premonição do que está para acontecer, anuncia à família que vão partir rapidamente. Richard está indignado com a forma como o seu próprio país trata um veterano da grande guerra. Irma chora nessa noite, o seu filho tinha acabado de fazer 7 anos e era bom aluno na escola (a mesma que os meus filhos), e agora era preciso fugir. Mas o seu lado prático vem ao de cima e com o coração partido escolhe só as coisas de que realmente precisam. O quadro daquele famoso pintor flamengo, a mobília, algumas joias, roupas e outras coisas são vendidas à pressa. O apartamento fica em nome da família, porque talvez seja tudo temporário e o regresso seja possível em breve em melhores condições. Ao filho dizem que vão de férias, mas o rapaz que é esperto, percebe que não são férias normais.
Partem para França. Vão viver para Paris, junto de familiares. A princípio tudo corre bem. Richard, que falava bem Francês, arranja trabalho, abaixo das suas capacidades, mas ao menos podia sustentar a família. A família segue com alarme o desenrolar dos acontecimentos na Alemanha, e em 1939 a guerra começa. A família, apesar de uma certa tensão, sente-se segura em França, mas as tropas Nazis em poucos meses tomam controlo do país, e o governo colaboracionista é instituído em 1940. Richard e família fogem para a província e vivem escondidos. Tentam em vão conseguir passagem para Inglaterra. No Verão de 1942, um vizinho os denuncia, e os gendarmes vêm buscá-los. Richard é internado num centro em Drancy, no Norte de Paris, e Irma e Herbert são levados para outro centro de internamento em Pithiviers. Em Setembro, Herbert, agora com 13 anos, um rapagão, é separado da mãe, para desespero de Irma, e deportado para Auschwitz. Alguns meses depois Irma segue para o mesmo destino, mas não chegará a rever o filho. Richard só será deportado no ano seguinte, e tal como os seus queridos, é cruelmente assassinado (“Ermordet”).
Em poucos segundos chego à Alicenplatz, e quando contornamos a praça, a roda da bicicleta mal consegue evitar passar por cima da placa seguinte. A da Klara Joseph que ali morou até 1942.
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Klara foi deportada sozinha, mas como a placa nos lembra que o seu apelido de solteira era Neu (significa Nova), podemos deduzir que àquela data, com os seus 51 anos, Klara era já viúva.
Imagino que terá casado nova, por volta dos 20 anos com o Sr. Joseph, comerciante. O Sr. Joseph terá também ido para a guerra em 2014 de onde nunca mais voltou. Klara não voltou a casar e viveu sozinha no apartamento que ambos possuíam na romântica Alicenplatz. Vivia de uma pensão que lhe deixara o marido, e alugava dois quartos na casa. Assistia pasmada aos acontecimentos vertiginosos que se propagavam desde a mal fadada eleição de 1932, tentando incutir uma certa normalidade ao seu dia a dia. Um dia cortaram-lhe a pensão. Um outro dia, vieram buscá-la, e sem ninguém a quem recorrer para ajuda, passados mais uns dias, viu-se apinhada e resignada num vagão com destino a Piaski na Polónia. O comboio atravessa a paisagem branca e gélida naquele rigoroso inverno de 1942 , e nalgum instante terá reconhecido um outro casal vizinho do outro lado do vagão, o que lhe trouxe um breve conforto, mas chegados ao destino, não os terá visto outra vez. Assassinada. O prédio onde morava na Alicenplatz, não sobreviverá à guerra e às bombas aliadas que arrasaram Darmstadt na fatídica noite de 11 de Setembro de 1944. A ironia é que se tem escapado à deportação talvez não tivesse escapado às bombas. No seu lugar, está agora um outro prédio de apartamentos, construído à pressa nos anos 50 para alojar os desalojados.
Tento imaginar como seria a Klara enquanto espero que os meus dois filhos mais velhos tranquem as suas trotinetes com o cadeado em frente à escola.
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E logo prosseguimos mais uns 30 metros para deixar o mais novo no Kindergarten que fica na Landwehrstrasse. E logo ali, no belíssimo casarão do lado, que está atualmente a ser renovado, mas mantendo a extraordinária e imponente fachada Vitoriana, encontro as placas seguintes. Aqui moravam…
Benny Bär (seu nome terá talvez sido Benjamim, o filho mais novo de uma numerosa família judaica, e o seu apelido significa Urso) e a sua esposa Thekla (nascida Fränkel), na sua idade avançada, moravam possivelmente no rés do chão deste magnífico condomínio ao melhor estilo do final do século anterior, de que eram proprietários. Os andares de cima estavam arrendados a famílias jovens com crianças que enchiam a escadaria de barulho. Benny teria herdado de seu pai a joalharia e o talento para passar horas a espreitar por uma lupa os mecanismos intrincados e delicados de relógios. O casal gozava de uma confortável e reconhecida posição na comunidade de Darmstadt e apesar de todos os problemas e abusos que os Judeus estavam a passar naqueles dias nunca lhes teria passado pela cabeça que um dia os viriam buscar a eles. Mas Benny, reformado e nos seus 85 anos, com dificuldades em andar por causa da corcunda que os anos de ofício lhe tinham deixado, e Thekla, uma mulher outrora bela e lúcida, agora com os seus 80 anos e com dificuldades de memória, não seriam excepções. E naquele dia, no fim do Verão, em que Benny acordara mais cedo com uma tosse terrível, e enquanto buscava um copo de água na cozinha, é de repente alarmado pelo barulho da chegada de um camião em frente à casa. As portas a baterem e os soldados a descerem com grandes estampidos, e em poucos segundos as batidas fortes na porta de entrada, para logo no mesmo instante essa mesma porta não mais existir. O seu pensamento corre para Thekla que ainda estava na cama, certamente desorientada. Os gritos e depois tudo tão depressa. Na caixa do camião encontra o primo e um sobrinho, tão confusos quanto ele. Todos choram. Benny e Thekla chegam ao ghetto de Theresienstadt na antiga Checoslováquia no final de Setembro. Sobre o arco da entrada lia-se aqui também o famoso slogan “Arbeit macht Frei” (O trabalho liberta). Benny pensou em todos aqueles anos, desde que começara ainda adolescente como aprendiz até se reformar em idade avançada, de trabalho duro e honesto na sua oficina de relógios, e não conseguiu ver qual a liberdade que daí tinha resultado. Ambos viriam pouco depois a falecer aqui, ele primeiro e ela no mês seguinte.
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Enquanto sigo pedalando, rumo ao meu trabalho e à minha liberdade, penso quão difícil é para este povo viver com a memória daquilo que se passou nestes tempos. As gerações que cresceram nos anos que se seguiram à guerra, foram permanentemente lembrados e recalcitrados com a culpa dos pais e avós. Os alemães depois da guerra cresceram a achar que eram maus por natureza. Nos filmes de Hollywood os maus eram sempre alemães. Ainda hoje a maioria dos alemães (educados) sente-se muito mal em manifestar qualquer sentido de nacionalismo. A minha mulher relembra, na sua adolescência e nos primeiros intercâmbios com outros jovens europeus, a forma como era olhada e tratada por ser alemã. “But the Germans are monsters” lhe terá dito uma jovem espanhola, ignorante da sua própria história de ditadura e guerras civis e perseguições e mortes. O mundial de futebol de 2006, que se realizou na Alemanha, foi uma das primeiras ocasiões em que os alemães voltaram a ter coragem de pendurar bandeiras às janelas para celebrar a sua seleção (e raramente o fazem por qualquer outra razão).
Um dia os meus filhos virão da escola com umas noções do que se passou e vou ter que me sentar com eles e explicar o inexplicável. Sobre os Águias, os Ursos e a Sra. Joseph, deixando-lhes claro que não sendo culpados, são responsáveis por serem melhores do que essa geração, num mundo que vai, extraordinariamente, renovando oportunidades para se repetirem os mesmos erros.
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Não é que os outros países não tenham tido as suas horas negras, em Portugal tivemos a repressão da ditadura e a guerra colonial mas não acredito que esteja tão presente e tão próximo a tantos como o Nacional Socialismo esteve e está na Alemanha. Poucos serão mais sensíveis para o drama de refugiados e deportados de guerra que os alemães, e por isso, mesmo com todos os riscos e inconveniências que daí possam advir, os alemães em geral, e Angela Merkel em particular, contra todos as marés, procuram fazer vingar o princípio de que é um dever e imperativo nacional, ajudar dignamente os refugiados da Síria, ou donde quer que sejam. Bem hajam.
VISTO DE FORA
Dias sem ir a Portugal: Não interessa, vamos no final da semana!
Um número curioso: um total de 73000 judeus foram deportados da França para campos no leste durante a guerra (fonte), os números totais são tão vastos que não consegui compilá-los.
Sabia que por cá: Paga-se uma taxa especial para cobrir os custos dos media estatais, consta que para prevenir que possam voltar a ser usados por governos para propaganda…
Nas noticias por cá: protestos em Hamburgo contra o G20