Gosto dessas manhãs em que conseguimos sentar-nos na mesa da cozinha, chá ou café na mão, e, sem a pressa do costume, conversar. Não são muitas, há sempre alguma coisa a fazer, os segundos do relógio tão presentes como a batida cardíaca. Mas nessas poucas manhãs em que não há a urgência dos ponteiros, ela tem sempre imenso a dizer e eu imenso a ouvir. Mais do que conversas são monólogos de alguém que passa muito tempo sozinha e não gosta. Para mim, são deliciosos: uma porta aberta a um mundo diferente do meu mas que se faz palpável e real nas palavras dela. É uma viagem sem sair do espaço da minha cozinha.
Às vezes deixo essas conversas inspirada, outras triste e outras cheia de imagens que talvez preferisse não ter. Um exemplo foi ontem. Contava-me que era ainda muito jovem quando aceitou sair das Filipinas para trabalhar em Singapura como empregada de uma família chinesa. Abandonou a escola antes de entrar no ensino secundário. Em parte, porque não havia como financiar a escolaridade de seis filhos, mas também porque a escola a aborrecia e ela não tinha nunca tempo para fazer os deveres e era uma vergonha, o professor sempre a perguntar e ela sempre sem saber responder, escondida atrás do aluno da frente, encolhida a ver se desaparecia da sala.
Chegou a Singapura com um inglês pobrezinho e sem nunca ter ouvido Mandarim na vida. A senhora da casa não falava Inglês, apenas Mandarim. Valia-se dos miúdos, na escola primária, que falavam inglês e traduziam. Mas quando eles iam para a escola, ali ficavam elas as duas, a comunicar por gestos. Ela atrapalhada, porque nunca tinha visto um micro-ondas ou trabalhado com uma máquina de lavar – embora a tudo tivesse dito que sim, que sabia, que já tinha trabalhado antes, porque se respondia a verdade não tinha sido seleccionada. Telefonava a amigas que também trabalhavam em Singapura e pedia instruções às escondidas e lá se foi orientando. Estávamos no final dos anos oitenta.
A senhora estava grávida de seis meses quando ela chegou. Seis meses depois, o bebé nasceu no Hospital. Um menino saudável que, quando chegou a casa, foi depositado na cama dela, porque a senhora tinha de começar a trabalhar. E assim foi, durante seis anos. A senhora era dona de uma “coffe shop”. Saia às duas da tarde e trabalhava até à meia noite. De manhã dormia. Ela foi, assim, a figura maternal daquela criança. A mão que pousava na testa quando havia febre, o colo que recebia o pequeno corpo quando estava cansado, os olhos que observavam os primeiros passos, o ouvido no qual recaiam as primeiras palavras. O menino foi crescendo e há na mente das crianças uma convicção, mais do que uma vontade, de que tudo vai permanecer sempre tal e como está, e que uma mãe não nos abandona. Mas ela não era mãe, pois não? Não, não era, ainda não. Mas era filha, e seis anos depois a sua familia vai-lhe rogar que regresse a casa, na sequência da morte de uma outra criada, de nome Contemplación.
País pobre e com poucas oportunidades, as Filipinas fornecem mão de obra barata para os países da Ásia e Médio Oriente com mais recursos. As mulheres trabalham como criadas, por vezes em regime de quase escravatura, e os homens na construção, também com poucos ou nenhuns direitos. Mas mesmo assim, se têm sorte e ficam entregues a uma familia que as trate bem, o salário que uma empregada recebe fora, por muito miserável que seja, consegue alimentar várias bocas nas Filipinas. Era o caso da infeliz criada em causa, Contemplación. A trabalhar em Singapura, enviava recursos para quatro filhos e um marido desempregado. No ano de 1991, é presa, acusada de ter afogado uma criança de 4 anos e enforcado uma colega, também das Filipinas, Della Maga.
A história era turva na altura, com muitas pontas soltas, e continua turva agora. Possivelmente nunca se saberá exactamente o que aconteceu. Mas nas Filipinas, a versão dos acontecimentos não se ressente de dúvidas, a verdade é transparente e límpida. Della Maga estava encarregue da dita criança. Num momento de distração, o menino tem um episódio epiléptico na banheira e morre. A familia é avisada e o pai, quando chega a casa, cego de fúria, pega numa corda, enrola-a ao pescoço da criada e enforca-a. Consciente depois do que fez e ciente de que em Singapura homicídio é pena de morte – e afinal de contas, apercebe-se, a criada era uma pessoa – a família decide acusar Contemplación, uma colega de Della Maga que tinha estado também em casa essa tarde. Acusa-a de afogar o menino e matar a amiga. Aconselhada a confessar insanidade pelo advogado em vez de inocência, Contemplación enterra-se nesta história, torna-a possível e inevitavelmente veste de mentira uma posterior negação.
O caso marinou durante quatro anos. Em 1995 foi decidido o enforcamento de Contemplación, embora fosse cada vez menos clara a sua culpabilidade. Houve manifestações massivas nas Filipinas. A desgraçada tornou-se símbolo nacional, a encarnação de todos os abusos que os seus cidadãos sofrem quando saem do país em busca de melhor situação económica. De pouco serviu. Singapura não vacilou, interessada em marcar a ferocidade do seu sistema judicial. Contemplación foi enforcada com a luz dourada do entardecer, na prisão onde viveu quatro anos, depois de se reunir uma última vez com os seus quatro filhos.
Esta história penetrou muito dentro na vida de quem a acompanhou, conta-me ela. No caso, dela, mudou-lhe a vida. As chamadas telefónicas da família passaram a ser diárias, às vezes várias vezes ao dia. Rogavam-lhe que regressasse, que em Singapura matavam criadas Filipinas ao entardecer e não queriam que o mesmo lhe acontecesse. Era o irmão que exigia, o irmão que pressionou os pais, e depois a mãe que telefonava e lhe rogava primeiro e exigia depois também. Ela dizia que não se preocupassem, que os patrões eram boa gente e nunca lhe fariam nada de mal, mas não havia modo. Em Manila as pessoas estavam na rua, revoltadas, mais casos de abusos vinham ao de cima, não se falava de outra coisa e o imaginário inchava como uma esponja: em vez de água, temores e terrores. Decidiu regressar.
Ela fazia as malas. O menino desfazia. Espalhava as roupas pela casa. Escondia-lhe o passaporte. Não podia conceber que ela o abandonasse. O coração dela apertava, minguava e doía no peito onde está encaixado. Na manhã em que saiu de casa, bem cedinho, o menino dormia. A família despediu-se em lágrimas e pediu-lhe desculpa por chamar um taxi em vez de a levar ao aeroporto, mas era melhor assim, que ela saísse de mansinho antes do menino acordar. Mas quando a porta da rua se abre ele ouve. Estremunhado, aparece na sala antes dela sair, a tempo de se atirar a ela em pranto, agarrar-se ao pescoço, ao braço, à roupa, onde conseguia agarrar, enquanto a mãe o fazia largar. Foi assim a despedida. A porta fechou-se, ela desceu as escadas a correr, a ouvi-lo gritar o nome dela. No beep, uma mensagem da criada dos vizinhos, que ouve o menino e a dor é tão audível que lhe faz a ela também escorrer lágrimas. São horas e horas que o menino chora. A sua mãe, que não era mãe, tinha-se mesmo ido embora.
Nas semanas seguintes, ela telefonava todas as semanas. Depois passou a ser de vez em quando. Hoje em dia, vinte anos passados, nas ocasiões especiais. Há poucos anos atrás, visitou-os em Singapura. Ele não a reconheceu. Homem feito e casado, em breve também um pai. A mãe mostrou-lhe as fotografias e relembraram a história da despedida. Falaram com desprendimento. A memória muda de cores com a mudança da vida. Mas algures, naquele homem grande, está um menino pequenino em pranto, escondido atrás de uma arbusto, no sopé da montanha de ossos e músculos. Nela, há um lugar precioso, bonito e triste, onde vive o ter sido mãe sem parir, de um filho que se perdeu, uma eterna saudade calada de um pequeno corpo no colo e mãos pequeninas agarradas ao pescoço.
As vidas que por mim passam
KUALA LUMPUR, MALÁSIA - Nas poucas manhãs em que não há a urgência dos ponteiros, ela tem sempre imenso a dizer e eu imenso a ouvir. Mais do que conversas são monólogos de alguém que passa muito tempo sozinha e não gosta