Nesse dia até o sol se sentiu na obrigação de sair à rua.
Ainda que tivesse primado pela ausência com que nos costuma brindar neste norte russo, os risos e os cantos da multidão teriam enchido toda a cidade com a sua alegria.
O dia 9 de Maio, mais conhecido internacionalmente como o “V-Day”, marca oficialmente o fim da II Guerra Mundial, dia que na Rússia (e não só) é celebrado com tremendo zelo.
Nós tendemos a recordar a vitória sobre as forças do Eixo como o feito de GIs americanos com maços de Marlboro no capacete, mas a vitória no teatro de operações europeu só foi possível graças ao tremendo sacrifício realizado pelos países da antiga União Soviética, que deixaram cerca de 20 milhões dos seus filhos e filhas, civis e militares, no campo de batalha.
O sangue derramado clama por lembrança, e a Rússia nunca deixa comemorações de qualquer espécie em mãos alheias.
Se as cerimónias militares, particularmente em Moscovo, impressionam pela escala e profissionalismo, mostrando ao mundo que as forças armadas russas já não são aquelas dos filmes de acção do anos 90 com generais a vender mísseis a troco de um Volkswagen Golf usado, outras há que impressionam tanto ou até mais justamente pelo contrário, pela dimensão humana que conseguem.
Assim o é a iniciativa em epígrafe, que porta o belo nome de “O Meu Regimento Imortal”.
Iniciativa recente, de cariz popular e entretanto abraçada pelo governo, consiste na organização dos descendentes dos soldados da Segunda Guerra (e por cá apelidada de “Guerra Patriótica”) por regimentos e participação em eventos comemorativos da vitória russa sobre o Eixo.
E ao chegar o dia 9 de Maio de cada ano, desfilam nas cidades russas com as fotografias dos seus antepassados, identificados pelo nome e regimento.
É um mar de fotos a preto e branco de rostos cinzentos, uns mais graves, outros mais sorridentes, como que flutuando ao sabor do passo irregular da multidão.
De novo desfilam os mortos, agora pela mão dos vivos.
E de novo desfilaram na avenida Nevsky, a principal de São Petersburgo.
A multidão que passa é aplaudida pela multidão que assiste, trocam-se sorrisos e acenos, há varandas engalanadas, altifalantes.
Quem avança não tem nem a severidade presumida do herói de guerra nem a soberba do vencedor, apenas a simplicidade de quem sentiu a História de perto.
Na coluna que avança misturam-se as raças, as etnias e religiões que compuseram a União Soviética.
Na altura ocorreu-me uma observação – ao voltar para casa, os GIs regressavam ao país mais próspero do mundo de então, para vidas cheias de oportunidade, enquanto os bravos soldados soviéticos voltavam para o pesadelo comunista, para o gulag, a fila do pão ou para o pelotão de fuzilamento por terem confraternizado com o inimigo.
Mesmo assim lutaram e morreram, não pela colectivização dos meios de produção nem pelas quotas de produção de aço ou tractores, mas unicamente pelo seu chão e pela sua casa.
No fim de contas talvez seja este o ponto focal desta manifestação singular – os grandes movimentos da História acabam por depender de pessoas que não os começaram ou quiseram, mas que com vontade ou sem ela foram imolados no altar da vitória.
Eu, que não tinha nenhum antepassado guerreiro, tive que me resumir à minha pobre identidade de burguês e dar o meu humilde contributo ao esforço de guerra, neste caso da guerra económica, bebendo um belíssimo café italiano.
Da janela ainda os vi marchar, com a esperança que os rostos daqueles que hoje caminham não acabem em solenes fotografias empunhadas pelos vindouros em honra a qualquer sacrifício que nunca desejaram fazer.
VISTO DE FORA
Dias sem ir a Portugal: 13
Nas notícias por aqui: Após a proibição inicial de charters turísticos russos para Turquia em reacção ao abate de um avião de guerra russo em território turco, o primeiro charter volta a voar para a Turquia a 4 de Setembro na sequência do levantamento da sanção por parte do governo russo.
Sabia que por cá... Não se pode deitar papel higiénico na sanita?
Um número surpreendente: O território da Rússia abarca 9 fusos horários? Em Vladivostok são 9 horas mais tarde do que em Moscovo.