Tem um olhar estranho, quase que desconfiado. Barba por fazer, desmazelada. Porca até. A pele está bronzeada do sol, enrugada, e o corpo encurvado, como se tivesse passado uma vida a olhar para o chão, com medo ou vergonha daqueles que olham de frente. Os ombros, esses, parecem frágeis, onde as roupas caem, penduradas. São velhas, um pouco porcas também, como ele. Mas lá está o velho, todos os dias, junto a uma rua perdida, sempre no mesmo lugar. Olha para as pessoas, desconfiado. Murmura frases para si que ninguém percebe, como estivesse chateado com todos ou com ninguém. Faz lembrar o Sr. do Adeus – que acenava a quem passava no Saldanha – se apenas fosse mais simpático e menos louco.
Estas comparações são constantes. Diárias. Para bem ou para mal, quem está fora encontra sempre pequenos pontos de ligação ao que conhece e que lhe é familiar. Nem sempre são boas comparações e a balança pende ora para cá ora para lá, mas é nesse paralelo, nesse limbo, que nos lembramos de casa. Das ruas que conhecemos sem olhar a mapas, dos restaurantes onde a comida é habitual. Das paisagens e fachadas que são tão nossas. Do pôr-do-sol e cheiro a mar que não existe em mais nenhum lado. E por incrível que pareça, para quem vive fora do país, o familiar torna-se mil vezes mais importante do que o novo. Estranho como as coisas são.
Viver em Amesterdão não é de todo um sofrimento. E nas comparações – lá estão elas – começamos sempre com o tempo. É terrível! Não faz sentido. Não nos deixa descansar ou habituar a uma estação. Não nos deixa sair de casa só de t-shirt e calções, com as mãos nos bolsos. Em pleno Julho, consegue ser verão de manhã e inverno à tarde, com chuvas que parecem querer estragar o dia de propósito. As quatro estações são substituídas por duas. Sol ou chuva. E esta última vem sempre acompanhada por um vento que atrasa o andar. Literalmente. É uma cidade que se comporta como uma namorada bipolar. Quando está sol é incrivelmente meiga e fácil de lidar, mas quando está chuva ou vento, ou uma combinação das duas, tentamos por tudo não começar uma discussão, que inevitavelmente acabamos por perder.
Há pequenas coisas que se aprendem muito depressa quando estamos num sítio que não é nosso. Comecei rapidamente a dar valor aos poucos dias perfeitos em que o sol decide surgir. Torna-se uma prioridade aproveitá-lo e com uma naturalidade abismal, tudo o resto se torna supérfluo. O programa de televisão, as compras da semana, aquilo que ficou por fazer e que era tão importante há dias, mas que agora perdeu completamente o sentido. A prioridade é estar fora, é ver e sentir o sol. Passear, fazer, acontecer. Recordo vezes sem conta os dias que “perdi” enfiado em casa, a ver televisão ou a fazer algo sem importância porque o verão ia durar mais uns meses. Meses, imagine-se. Aqui contam-se horas, com sorte uma boa tarde completa. E são preciosas. Queremos que não terminem e só recolhemos quando o sol diz um final adeus. Mas lá está, não é o nosso sol. O sentimento é diferente. É emprestado.
Mas nem tudo é mau. E para ser sincero existem poucas coisas em Amesterdão que não são incrivelmente bonitas. Cada rua é uma descoberta, cada ponte um lugar de paragem. Os canais, os barcos, as casas. Todos alternam a disposição entre si e há sempre mais para ver numa próxima rua. Tudo parece um desenho que gostaríamos de ter pintado. A calma dos canais contrasta com a confusão das pessoas a andarem de um lado para o outro e as casas são todas pitorescas, sem excepção. E todas iguais, ao ponto de ser impossível memorizar a fachada de um restaurante ou uma ruela que gostaríamos de voltar a visitar. A cidade é organizada e isso nota-se nos pequenos pormenores. Há uma sensação que tudo tem o seu lugar, que foi pensado e que em última análise, está correcto. Nem lhes passaria pela cabeça fazer diferente. Há também uma arrogância presente que não é facilmente detectável, mas que está lá. E que me irrita profundamente. Uma ausência de desorganização que em Portugal conhecemos bem demais. E faz falta. As filas formam-se naturalmente nos Bancos ou supermercados, há indicações de tudo, visíveis, imagine-se. Os solitários buracos nas estradas, encontrados de manhã, desaparecem pela tarde. Ninguém fura uma fila para fazer só uma perguntinha. As horas são cumpridas com rigor, como se fizesse algum sentido uma pessoa chegar a tempo e não se atrasar cinco minutos. Há uma falta de qualquer coisa que não consigo explicar. Sim, as coisas funcionam, mas falta algo. Talvez o nosso “chico espertismo” muito característico, o desenrasque, o “epá, não está perfeito mas serve”. O “jeitinho”, que nos caracteriza tão bem, e que é completamente alheio aos holandeses. Formas diferentes de ver as coisas e claramente são eles que estão errados.