Não. Não é sobre The Smiths, mítica banda de Manchester e da sua memorável música cujo título é o desta crónica que vos vou falar hoje. Era ainda 1986, o álbum chamava-se The Queen is Dead e o Reino Unido saía de uma negra escuridão recente, onde os jovens pobres e excluídos desta cidade escura e industrial tinham começado a ver luz na movida estética da editora Factory ou da discoteca Hacienda. Também os Smiths eram uma banda de quatro rapazes que começaram por se juntar no “Salfords Lads Club”, que só mais de 20 anos depois consegui espreitar: um pequeno espaço onde os adolescentes podiam estar, praticar desporto, ouvir música, dança. Locais de libertação e de afirmação como tantos outros que emergiam servindo de ponto de encontro a uma juventude que se quer inquieta, mas sobretudo, que permitiam sempre uma maneira diferente, inovadora de estar e de ser.
Ah. Foi esta música ainda o título de um belíssimo poema de Mário Rui Oliveira: “Em ramos / de pinheiro-manso / o sol demora-se / a luz, uma voz branca / igual ao latir dos cães / que nos chega / imperceptível / cheiro a jasmim / pela janela calma / estendida ao silêncio / como Tu / apenas.”
Eram ramos de pinheiro-manso que então nos traziam luz. E que afirmavam que ela não se extinguiria. Uma esperança nova de poder ser como o sol, demorando-se. Eram tempos de grande novidade e mudança. Portugal também mudara, anos antes: 1974, a revolução, a liberdade e aí sim, em 1986 com a entrada na União Europeia, chegava a mudança mais definitiva para muitos que como eu deixavam para trás um país escuro e triste onde nada nem ninguém ousava afirmar o desejo de ser, o prazer de existir.
Era a luz prometida. E as trevas anteriores cujo contraste ela marcava mais e melhor. Como agora nos recorda o brilhante documentário de Marco Martins sobre a história do Ballet Gulbenkian, Um Corpo que Dança. A Gulbenkian lançou um grupo de dança em 1965 e, quase 40 anos depois, em 2005, encerrou sem aviso e definitivamente a sua cada vez mais saudosa companhia. A minha mãe foi aí pianista acompanhadora durante os anos da direção de Jorge Salavisa, que em 1976 trazia de Londres um olhar novo, capaz de abrir janelas que jamais cessariam de levar a outras. Portugal mudava, como tão bem se nota neste filme, saindo de uma avassaladora pobreza cultural, social e económica. Os corpos inertes e apáticos de milhares como nós soltavam-se, como os das bailarinas e bailarinos que pisavam o Grande Auditório ou que, de forma fantástica, faziam digressões por todo o País e estrangeiro. Devemos muito à Gulbenkian, aos Encontros Acarte, ao Jazz em Agosto, aos Ateliers de Férias para os nossos filhos, à sempre excelente Temporada de Música (apesar de chegar aos bilhetes ainda ser tarefa hercúlea) e à forma como nos traz luz.
Sim, foi por aí que pudemos começar a viver o corpo mais próximo do que a mente pensava e sentia. Sim. A nossa infância e adolescência, para aqueles que a tiveram antes da primeira metade dos anos 80, foi de um deserto assombroso e paupérrimo que só agora nos damos cada vez mais conta. Tudo era ausente ou, quando presente, a pouco mais correspondia do que a um espartilho em que ao corpo se pedia ordem, contenção, formalidade e, acima de tudo, pouca ou nenhuma diferença sobre o dos outros. Por isso, começar a vesti-lo de forma diversa, a movê-lo pela prática coletiva do desporto, através da dança criativa e moderna ou simplesmente ao som de uma música que exigia expansão no movimento e criatividade na forma como riscava o espaço (e o tempo), era mesmo uma voz nova e branca, cristalina, “como Tu, apenas”.
Como “Tu”. A pessoa que verdadeiramente és. A que segue em liberdade o que sente e sem medo. Não, não tenhas medo. Sim, ouve diariamente a tua voz interior, cumpre-a. Tu. Tu, que procuras (ou deves fazê-lo) essa mesma luz que nunca se extingue e que, afinal, é a tua, “estendida ao silêncio”, fluorescente.
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