‘Era um prazer pôr fogo às coisas.” Assim arranca Fahrenheit 451, a obra-prima distópica de Ray Bradbury – titulada com a temperatura a que o papel atinge o ponto de ignição e é consumido pelo fogo, na qual os livros são proibidos e queimados com querosene. O livro teve várias interpretações ao longo dos tempos: houve quem o lesse como um grito de revolta contra regimes totalitários e ditaduras, houve quem o visse como resposta ao macarthismo. O autor acabou por explicar: não quis, em 1953, escrever uma história sobre censura estatal, mas sobre a forma como a televisão estava a transformar as pessoas em idiotas acéfalas e alienadas. Destroem-se livros porque os livros são perigosos, estimulam o pensamento crítico e propiciam um escape à doutrinação emitida pela TV.
A metáfora é válida até aos nossos dias. Hoje, a tecnologia é diferente e o combustível para queimar livros é outro, vem da internet e da fogueira do ultrapoliticamente correto, do policiamento permanente da linguagem, do “wokismo” desenfreado.
Nos últimos dias, temos tido exemplos que devem fazer-nos parar para pensar. A editora inglesa do famoso Roald Dahl, autor de clássicos infantis como Charlie e a Fábrica de Chocolate, anunciou que vai remover, das novas edições, “linguagem potencialmente ofensiva”, que será substituída por expressões mais “educativas”. Livros do autor, intensos e com um lado sombrio, vão passar a dizer “enorme” em vez de “gordo”, “pequenas pessoas” em vez de “pequenos homens”, “bestial” em vez de “feio” e a palavra “doido” desaparece – são centenas de alterações em nome de uma espécie de novilíngua. Nos livros do 007, o atrevimento é outro: a editora inglesa da coleção de Ian Fleming limpou as referências consideradas racistas e ofensivas, limou personagens, neutralizou ambientes.
Golpe de marketing, porque motivado apenas pelo aumento de vendas, ou preocupação genuína, pouco importa – o efeito é o mesmo: clássicos expurgados de informação e de alusões que são expressão de um modo e de um tempo deixam de ser a mesma obra. São outra coisa: algo de novo, sim, com o risco de serem uma mistela insípida pronta a ser deglutida por fracas cabeças, acríticos incapazes de enquadrar as obras no seu contexto.
Não se pense que estes são casos únicos. Esta nova censura de textos antigos anda a fazer o seu caminho há mais de uma década, com solidez de argumentação variável. Já em 2011, a editora New South Books, do Alabama, relançou As Aventuras de Tom Sawyer e As Aventuras de Huckleberry Finn com conteúdos reescritos e expurgados de termos racistas para se referir a negros e a índios como “nigger” e “injun”. Em 2021, uma comissão escolar no Canadá ordenou a remoção de mais de 4 700 obras, entre as quais se incluem livros do Astérix e do Tintin, com o intuito de combater estereótipos negativos em relação aos grupos indígenas. No ano passado, o Twitter andou dias a discutir o clássico Moby Dick, de Herman Melville, depois de o influencer brasileiro Felipe Neto ter partilhado o seu incómodo com passagens da obra escrita em 1851.
Por cá, o debate vai atrasado, mas começa a fazer-se ouvir. Não faltará quem veja machismo no romantismo de Camilo Castelo Branco ou passagens inaceitáveis em livros de António Lobo Antunes. Fernando Pessoa, por exemplo, não escapa ao novo crivo. Escritos de um dos seus heterónimos foram arremessados como críticas ao poeta, de forma a contestar o seu nome para um programa de intercâmbio entre estudantes da CPLP. Discute-se já o teor potencialmente ofensivo d’Os Maias, depois de uma investigadora cabo-verdiana ter identificado várias passagens que espelham uma ideia de “superioridade da raça branca” e o “desdenho pelo negro”. Desconfio de que Eça de Queiroz se riria desta análise retroativa: “O riso é a mais antiga e mais terrível forma de crítica”, dizia.
A palavra importa, note-se. Percebo bem a sua importância e os limites que têm de imperar numa sociedade civilizada. E compreendo que uma obra precise de ser contextualizada e enquadrada à luz do seu tempo, porque não poderia ser escrita assim hoje. O problema é quando, em nome da correção, se destroem clássicos datados, se enviesam os estilos dos autores, se passa a pano assético toda uma época. O problema é quando se quer neutralizar o passado, as obras – sejam elas quadros, peças, músicas ou livros – e os seus criadores, à luz dos valores e ditames contemporâneos. É assim que se amordaça o pensamento crítico e se formam os tais idiotas a que Ray Bradbury se referia.
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