Embora os políticos “profissionais” não gostem de o assumir, se há coisa que os últimos anos têm deixado bem claro é o fim da esquerda e da direita tal como as conhecemos: esses epítetos – antes divisores de águas – hoje já não chegam. É isso que, em grande parte, explica que os partidos políticos tradicionais tenham hoje um discurso cada vez menos mobilizador. Desfeitas as grandes diferenças e ideologias, sobra o quê?
Um pouco por todo o mundo ocidental, os contornos ideológicos entre os partidos de um lado e de outro estão cada vez mais fluidos. Se durante décadas a retórica se baseava sobretudo nas ideias de justiça social à esquerda e na economia de mercado à direita, hoje praticamente todos os partidos se apropriam de ambos os temas. Paralelamente, os movimentos políticos emergentes, nos extremos ou mais moderados, atraem pessoas de todos os quadrantes políticos e, por isso, são tão difíceis ou mesmo impossíveis de catalogar.
A dicotomia política prevalecente na Europa e nos EUA, com a emergência de novos partidos e movimentos, deixou de ser a que opõe a esquerda e a direita ou conservadores e liberais, para se centrar na que distancia os nacionalistas dos “globalistas”. Foi essa a tónica dominante no Reino Unido, em Itália, em França, na Polónia, na Holanda, na Hungria. A própria ideia da luta de classes, que tradicionalmente se traduzia nos desfavorecidos a votarem à esquerda e nos mais ricos a votarem nos partidos conservadores, está a perder fulgor. Em Inglaterra, por exemplo, o histórico Labour Party já não pode ser considerado o partido que, no sentido tradicional, representa a classe trabalhadora. A classe média britânica que tradicionalmente votava nos Tories passou a dividir-se, e o Labour viu crescer a base de apoio entre as classes mais educadas e ricas. Simbolicamente, em 2017, o Labour ganhou Kensington, a circunscrição mais rica de Inglaterra. Em França, desde que apareceu a nova esquerda Em Marcha! de Macron que esta se distancia mais de Le Pen nos círculos onde há eleitores com níveis de educação superiores.
Portugal, nesta matéria, sem ter grandes derivas extremistas, é um verdadeiro case study. Marcelo Rebelo de Sousa reúne quase consenso com a sua presidência próxima, afetuosa, conciliadora. Poucos se lembram de que foi líder do PSD, e para os que se lembram e não vestem laranja isso pouco importa. António Costa conseguiu unir esquerdas que se pensavam inconciliáveis em torno de uma Geringonça que pula e avança. E, tanto por mérito próprio como por demérito alheio, conseguiu apropriar-se de temas que são, por convicção e prática, tradicionalmente das direitas: o rigor orçamental, o crescimento económico, a responsabilidade com os compromissos. Ao fazer tudo isto desintegrou, para desorientação geral, muitas das características identitárias dos principais partidos. O Bloco de Esquerda deixou de ser o partido do contra e das causas fraturantes para ser um aliado do “sistema” ao centro, o PCP deixou de ser o partido da redistribuição a favor dos fracos e dos oprimidos para alinhar pelos superavits e o investimento público em mínimos históricos, o PSD deixou de ser o partido zeloso das contas públicas para vestir a camisola do gastador irresponsável, o CDS-PP deixou de ser pelas elites e pelos valores tradicionais para propalar abordagens a raiar o populista.
Nesta amálgama cada vez mais confusa, sobressaem os políticos mais do que os partidos e as ideologias, e crescem os movimentos que negam a dicotomia esquerda/direita e apostam nas causas. E assim surge em força o PAN, que tal como no início sucedeu com o Bloco, ganha tração açambarcando, de forma mais casuística do que consistente, fatias da população que se reveem em novas temáticas da moda, como a defesa dos animais e do planeta. Entre estes eleitores estão muitos para quem estas causas são verdadeira forma de vida e outros que simplesmente já não se reveem na conversa dos partidos tradicionais.
Nestes, sobretudo ao centro, faltam novas caras e novas causas. Ideias magnéticas que mobilizem, que envolvam, que cheguem às pessoas. Falta renovar os protagonistas e o discurso (mesmo o PS, agora na mó de cima, o que é sem António Costa?): se deixarem esses temas para os novos movimentos e pequenos partidos, estão condenados a mirrar, sobretudo junto dos jovens a quem as grandes batalhas ideológicas dizem muito pouco. A nova política do século XXI, a do mundo globalizado e do homo connectus ligado em rede, não vem nos manuais de ciência política do século passado. Está a ser escrita hoje e quem não conseguir lê-la a tempo ficará para trás.
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