Os números nunca explicam tudo nem conseguem, só por si, dar a dimensão global da realidade, que é sempre muito mais complexa e dinâmica do que a enunciação de um conjunto de algarismos. Mas quando, mesmo de forma rápida, procuramos números sobre a realidade da violência doméstica em Portugal, é impossível não ficarmos incomodados, alarmados e até revoltados com a dimensão do fenómeno, que todos os dias vai sendo noticiado, com maior ou menor intensidade.
Ninguém, com honestidade, pode dizer que não conhece os números. Mas convém repetir alguns: houve 28 mulheres assassinadas em 2018, e mais outras 11 só nos primeiros dois meses deste ano (com contas até dia 25…); em média, são registadas mais de 30 mil queixas por ano; existem mais de 700 agressores vigiados com pulseira eletrónica e um número ainda maior de mulheres obrigadas a usar aparelhos de teleassistência como proteção e para poderem acionar em caso de alarme; mais de 3 mil mulheres e crianças estiveram acolhidas, só em 2017, em casas de abrigo – um ano em que, segundo as estatísticas oficiais, as forças de segurança registaram 26 713 ocorrências de violência doméstica.
O pior, apesar do dramatismo destes dados, é que estes números não têm mostrado tendência para abrandar. Apesar de todas as campanhas de sensibilização e de informação, dos muitos organismos criados, dos estudos desenvolvidos, da maior denúncia destas situações, ninguém consegue dizer que se está a conseguir ganhar a batalha contra a violência doméstica. Há um sentimento generalizado de que os crimes ficam impunes e, como todos sabemos, muitas mulheres nem sequer avançam com queixas, por receio de represálias. Mais um número esclarecedor: em 2015, apenas 9% dos agressores condenados tiveram pena efetiva – aos outros 91% foi aplicada a suspensão da pena.
O que isto provoca é que os agressores, além de não terem o castigo da pena, também não sofrem, na generalidade dos casos, a censura social a que este crime deveria estar associado. Não admira, por isso, que quando confrontados com a questão de quais são os principais problemas do País, como sucedeu no último Eurobarómetro, apenas 4% dos portugueses refiram o crime no topo das suas preocupações (dominadas pela saúde, a segurança social, o custo de vida e o desemprego). Há uma razão para isso: não existe sequer a perceção de que a violência contra as mulheres, apesar de todos estes números, seja realmente um crime tão condenável como os outros – embora seja considerado crime público, de facto, há quase duas décadas.
A culpa, não custa reconhecê-lo, é da Justiça. Em especial da Justiça exercida através do exemplo de juízes como o cada vez mais tristemente célebre Neto de Moura, com as suas sentenças sempre muito mais protetoras e condescendentes dos direitos dos agressores do que dos das vítimas. Mas não é o único. Outros juízes, em tribunais da Relação, já tomaram no passado a decisão semelhante de “perdoar” a pulseira eletrónica a agressores condenados, com base nos mesmos argumentos jurídicos, nomeadamente a ausência de autorização por parte do arguido ou a falta de fundamentação da condenação.
Quando o fazem esquecem-se, no entanto, de que a pulseira eletrónica nestes casos é um instrumento usado mais para proteger a vítima do que, propriamente, para penalizar o agressor. A pulseira é imposta para tentar impedir novas agressões, evitar a repetição do mesmo crime.
Penalizar os agressores, defender as vítimas e, dessa forma, terminar com a sensação de impunidade que rodeia os crimes de violência doméstica tem de ser a função da Justiça. Se não o faz, precisa de ser vigiada, de forma eficaz e vigilante, por todos os poderes e, acima de tudo, pela sociedade. Se for preciso, até, com o recurso a pulseira eletrónica. Mas, neste caso, irrevogável.