Vista dos confins mais distantes do espaço, a Terra
não é maior que uma partícula de poeira. Lembre-se disso
a próxima vez que escrever a palavra humanidade
Paul Auster, Viagens no Scriptorium
(São Paulo, Companhia das Letras, 2007, p. 10)
No imaginário de muitos intelectuais, políticos e humanistas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos é vista como fortemente inspirada pelos princípios iluministas e humanistas. Não é difícil, nem exagerado, ler o primeiro artigo desse texto, assinado em 1948, e sentirmos uma adesão total a essa límpida e cristalina fórmula:
“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros, em espírito de fraternidade.”
Redigida no rescaldo da II Guerra Mundial, esta Declaração é um grito de humanismo após uma era de brutais violências. No mais linear sentido, este texto é fruto da mais violenta guerra, e das mais bárbaras violações dos direitos fundamentais. Após uma guerra tão devastadora, a humanidade precisava de uma luz e de um caminho, de um instrumento que colocasse em linguagem simples e escorreita, aquilo para qualquer um de nós é o óbvio.
Mas essa obviedade que se encontra no articulado dessa declaração, é o fruto de muitos anos de pensamento político e filosófico, de muitas guerras e de muito sofrimento. Apesar de tudo nesse texto parecer óbvio, se o fosse, o texto não necessitava de ter sido escrito. E a comprovação da sua dimensão vanguardista, temo-la nos dias de hoje, nos conflitos que grassam por todo o mundo, especialmente na Europa e no Médio Oriente.
Há não muito tempo, Noam Chomsky, criava uma imagem bastante feliz para explicar a degradação da paz que se conseguira após a Segunda Guerra Mundial. O pensador caracterizou o efeito da memória da guerra, como uma vacina. Com uma eficácia maior nos anos imediatamente subsequentes à guerra, ela parecia ter perdido agora qualquer capacidade para nos manter afastados da contenda. Este raciocínio era aplicado, não só à guerra, mas, de forma mais lata, à aparente falência do multilateralismo e das instituições internacionais.
Capazes do sublime, somos também hábeis na destruição, seja do nosso próximo e semelhante, seja do próprio planeta, devendo as atitudes negativas e destruidoras ser vistas em relação umas com as outras.
A célebre frase do Génesis bíblico, “Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra” (Génesis 1, 28) ganhou hoje mais atualidade que nunca. Possivelmente, esta é a frase mais anti ecológica que podemos encontrar num Texto Sagrado. Ela foi a base de toda uma postura cultural que nos retirou dos ecossistemas e nos criou o convencimento de estarmos acima, fora deles. A noção de domínio é aqui plena e forte.
Saímos do equilíbrio dos ecossistemas, dominando-os, alterando-os, usando a Terra como simples fonte de matéria-prima e de energia, e, recentemente, fomos postos em causa com um dos mais pequenos instrumentos que os equilíbrios naturais criaram, um vírus. Irónico o correr do tempo, e curiosa a forma de vida desta espécie que se auto proclamou, não apenas de Sapiens, mas de Sapiens Sapiens.
Procuramos uma ecologia que seja mais que biológica, dos biomas, mas seja também de justiça, de equidade e de respeito, num tempo em que urge pensar o essencial e regressar ao básico dos valores que nos devem nortear.
Pouco depois do texto inspirador de Edgar Morin, que foi aqui apresentado há poucos minutos, Fraternidade: para resistir à crueldade do mundo, de 2019, também a Igreja Católica, através da caixa de ressonância que é o Papa Francisco, tomou a questão da Fraternidade de forma interessante através da encíclica Fratelli Tutti.
Este texto foi apresentado sumariamente entre nós por Tolentino Mendonça no dia 3 de outubro de 2020 na Revista E (revista do Expresso), com a seguinte frase em destaque:
“E da tríade Liberdade, Igualdade, Fraternidade, as nossas sociedades integraram as duas primeiras, mas deixaram de fora a Fraternidade”
Seja na visão laica e cidadã de Edgar Morin, seja na interpretação e nas propostas do universo religioso, a radiografia era a obviedade que o nosso tempo nos diz a todo o momento: a urgência da Fraternidade.
A urgência de reencontrar um sentido, e respetivas pedagogias, para os Direitos Humanos.
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