Há uns meses, em passeio pela Feira do Livro de São Paulo, ofereceram-se o inesperado Não podes caber em palavra alguma, um grupo de Depoimentos sobre Valter Hugo Mãe e o Brasil. Trata-se de uma edição que reúne um grupo de textos de vários autores brasileiros, editados após o livro As doenças do Brasil, de Mãe.
As doenças do Brasil (2021) é um livro de leitura obrigatória, que na literatura atual portuguesa apenas tem ao seu nível o Não se pode morar nos olhos de um gato (2016) de Ana Margarida de Carvalho. E a obrigatoriedade da leitura destes dois livros reside na dimensão de desconstrução cultural colonial e construção do humano, fora dos ditames das tradições herdadas que nos moldam e tolhem o discernimento.
Em ambos os casos, somos confrontados com o mito do brando colonizador, da mestiçagem como peça de um “amor” natural que suavizou o colonialismo que, assim, não foi mais que “encontro de culturas”. Não, em ambos os textos, somos lançados na brutalidade das vidas pequenas, mas singulares, de personagens que nos obrigam a olhar para a violência em estado puro que representaram esses encontros em que, uns e outros, tinham papeis completamente distintos, nos antípodas dos direitos.
No caso de Valter Hugo Mãe, o que mais me fascinou na leitura d’As doenças do Brasil foi a capacidade para sair de uma matriz e entrar, mesmo que aos apalpões, num universo de nomes, de conceitos, de uma cultura indígena, materializando num texto cheio de oralidade, uma alteridade que se torna a essência da narrativa. Foi a arte de fazer palavras, de fazer conceitos, de construir o que delas advém, ideias, que me mobilizou nas poucas noites em que devorei o volume. Aliás, esta liberdade, tão pouco comum na literatura portuguesa, encontramo-la muito mais facilmente nas culturas lusófonas menos agarradas aos dicionários, onde o escritor tem uma liberdade muito mais dinâmica de construir linguagem. Expoente, já com longos anos de labor, é Mia Couto.
Recordam alguns dos autores dos ensaios inclusos neste Não podes caber em palavra alguma, a forma magistral como Mãe cria as suas principais personagens, não só no quase-ideário lançado através da nomeação, mas na tensão entre a palavra, a forma de transmitir a narrativa, e a construção da mestiçagem: Honra, o jovem que nascera do resultado da violação de uma índia por um branco, não sabe qual o seu lugar e, só o saberá, quando encontrara a sua função, a vingança por esse ato em que, na sua cor mais clara, Honra se sente desonrado, destruído desde a nascença na sua identidade, no seu Eu.
É nesta forma de mostrar poeticamente as feridas de um processo tantas vezes dito de civilizacional, que Valter Hugo Mãe nos leva para um texto que ultrapassa as palavras, apesar de fazer delas um uso semiótico quase perfeito. Tudo está para lá do escrito, num texto que vai muito além das palavras, criando sentidos como que numa micro-história que, profilaticamente, nos trata essa doença desde o século XVI colada ao Brasil, sem que nunca mais dele se tenha desagarrado.
Durante anos andei, no campo das mitologias antigas, a trabalhar a forma de criar nomes, especialmente nomes de deuses. Analisei a evolução das palavras e o seu uso nas narrativas mitológicas, tentando perceber como elas são imagem de uma cultura popular, transversalizada, e moldando-a em contínuo num criar de mais língua, de mais ideias e de mais consensos, modas. A própria construção de ideia de “deus”, maiusculada, monoteizada, teve um forte impulso quando a linguagem e a escrita se soltaram do desenho e, mesmo, da palavra. Um deus só pode ser Deus a partir do momento em que nada o consegue guardar nem definir. Só se é transcendente, metafísico, se não se for confinável a uma definição – se o defino, amarro-o a uma palavra e, dessa forma, ele já não está além, está aqui.
Não podes caber em palavra alguma é esse exercício que Mãe faz n’As doenças do Brasil, ultrapassando a linguagem, fazendo reencontros, alteridades em que nos soltamos de nós e, por momentos, temos a vertigem de entrar noutros. Só assim podemos, de facto, dialogar: saindo de nós mesmos, despindo a nossa roupa. Recordo a imagem sempre dramática, profundamente potenciadora de um pessimismo, de Jean-Jacques Rousseau, quando nos leva a concluir que, quem sabe, o nosso problema encontra-se no processo cultural, civilizador. O “bom selvagem” estaria livre daquilo que nos prende.
Afinal, e num texto escrito por um branco, português, seja Mãe, ou eu, os colonizados somos também nós que, sem o sabermos, fazemos parte dessa máquina trituradora de liberdade de naturalidade que é a civilização. Sim, porque, mesmo que enalteçamos, e faço-o com todo o afinco e, até, orgulho, os valores lançados pelo Iluminismo, que nos levou a um patamar de direitos civis nunca antes vivenciados, até aí, somos colonizadores de nós mesmos.
Criador e Criatura são um mesmo processo. Colonizador e colonizado são um mesmo destino de não mais nos podermos desligar da História. Queiramos, ou não. Gostemos, ou não. Não cabemos em palavra alguma, e somos doença de nós mesmos.
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