Auschquê? O rapaz não tem inteira culpa. Mas eu também não a tenho toda. Massacro-o com obsessiva regularidade com exposições para gente grande, dissertações à mesa sobre temas francamente maçadores, e até com o visionamento de um outro Mankiewickz (o Tomás, coitado, levou com suecos mudos). E, se querem saber toda a verdade, até o pobre do avô se oferece para tardes inteiras no planetário e no museu da ciência. Mas, dito isto, não quero que o rapaz se transforme (e cito-o) num nerd ou num forever alone. Vai daí, tempero a coisa com umas idas à Luz, muita conversa escatológica, livre-trânsito para palavrões quando estamos entre homens, e uns filmes indigentes do tipo Borat. Resumindo, muito francamente nunca me deu para lhe fazer uma preleção mais séria sobre o horror do nazismo.
Dei-me conta disso, envergonhado, na semana passada: 70 anos passados sobre a libertação de Auschwitz, o Manuel nunca tinha ouvido falar nos campos da morte e achava que o nazismo era “uma espécie de religião” (neste ponto talvez não estivesse tão enganado como isso). Com a culpa a pesar-me nos ombros, pus mãos à obra e a verdade é que a coisa está agora em vias de se resolver. Comecei por pensar na icónica banda desenhada MAUS de Art Spiegelman (ele próprio filho de sobreviventes do Holocausto) mas, convenhamos, cada coisa tem o seu tempo e este ainda não era o certo para uma graphic novel particularmente sombria. Fui portanto ao baú da minha memória e desencantei uma BD velhinha, muito puída, preciosa como são todos os livros que lemos na meninice, e que a minha mãe ganhou num qualquer prémio no liceu francês nos idos de 50 (La Bête est Morte, de Zimmermann e Calvo). A obra, entretanto desaparecida das livrarias, tinha constituído a minha própria iniciação ao Holocausto, e o rapaz vai levar com ela numa das nossas próximas noites “à homem”. Antes ou depois da conversa escatológica, isso logo se verá.
Acontece que, estava eu mergulhado nestas culpadíssimas considerações, me dei conta que a questão é muito mais séria, muito mais vasta, e ataca muito mais idades. Algumas até que há muito deviam ser do juízo. Ora a verdade é que há, quer queiramos quer não, um imperativo ético que temos de aceitar carregar connosco. O de impedir que a História se repita. Uma coisa que, qualquer historiador vos dirá, a dita tem a perigosa tendência para tentar. O mesmo é dizer: todos temos o imperativo de não permitir que se esqueça, nunca por nunca, a inerente e assustadora fragilidade da paz (de qualquer paz) e a facilidade espantosa com que o ser humano mais banal se transforma numa desumana besta. Vai daí e lembrei-me de sugerir, através destas páginas, a quem quer que me dê crédito para perorar sobre o assunto, uma espécie de curtíssimo “kit” contra o esquecimento dos mais grandinhos. É muito pouco mas é o que tenho para dar. Além do mais, a lista podia ser infindável mas obriguei-me a reduzi-la a dois títulos. O Mundo de Ontem, de Stefan Zweig, é o relato da infinita fragilidade da civilização e o fim de todas as ilusões sobre a normalidade do quotidiano. Se Isto É um Homem, de Primo Levi, é a mais dilacerante descida ao inferno dos campos da morte nazis alguma vez escrita. E, em certo sentido, o fim de todas as ilusões sobre a perenidade da Humanidade. Um e outro, falta dizê-lo, se suicidaram. Relê-los é, paradoxalmente, relembrá-los para que ninguém tenha de voltar a escolher a morte para esquecer a vida.