O choque e o horror de Paris ainda ecoam, com toda a brutalidade, na cabeça e no coração de todos nós. Os incidentes da Bélgica e de Berlim fazem supor que esta história terrível está longe do fim e que não temos teremos tempos fáceis pela frente. Talvez, por estas razões, seja ingénuo tentar fazer duas reflexões serenas sobre o tema. Mas vale a pena tentar.
1 A primeira está relacionada com a dicotomia clássica liberdade / segurança. No amanhã do horror é tentador, e até certo ponto compreensível, ceder ao discurso securitário. Ninguém quer obviamente ver repetidos os atos de barbárie que marcaram o dia 7 de janeiro de 2015. E num mundo cada vez mais global e cada vez mais perigoso, é tentador, repito, ponderar ceder um pouco mais de liberdade para conquistar um pouco mais de segurança. Notem que nem sequer falo dos dislates da sr.ª Le Pen e de todos quantos se alimentam do radicalismo para fazer medrar novas formas, institucionalizadas, de radicalismo securitário. Falo, porque o facto me preocupa muito mais, dos impulsos securitários que, não chegando obviamente a pisar o risco do totalitarismo, nos tentam a todos, cidadãos, comentadores ou políticos, mais ou menos “normais”, mais ou menos moderados. E nem é preciso ir muito longe para procurar um pequeníssimo exemplo daquilo a que me refiro: não foi a sr.ª Le Pen que, menos de 24h depois do ataque, suscitou o debate sobre a revisão das regras de Schengen. Sendo que a procissão, receio bem, ainda não saiu do adro.
Tudo isto é tentador, tudo isto é compreensível, mas tudo isto é uma estrada perigosa. Digo-o por uma razão muito simples: nunca, como hoje, vivemos tão perto da distopia orwelliana do Big Brother. Nunca como hoje foi tão fácil vigiar, controlar, espiar, manipular. Nunca, como hoje, tivemos ao nosso dispor tantas armas e tantas ferramentas para invadir a privacidade do cidadão comum. Com a agravante de que nunca, como hoje, valorizámos tão pouco essa privacidade. Ora a negação da privacidade é a negação suprema da liberdade. E a negação da liberdade é a negação da própria humanidade.
Dir-me-ão que, ainda assim, é impossível assobiar para o lado e nada fazer. Concedo. Mas pelo sim pelo não, preferia que nesta matéria não reagíssemos de cabeça quente.
Dito isto, e agora que deleitei alguma esquerda mais colorida, deixem–me irritá-la com uma segunda reflexão. A tolerância que o Mundo, e muito bem, se ergueu para defender na sequência do atentado de Paris, é uma estrada com múltiplos sentidos. E é um conceito que só tem pleno nexo se servir para o aplicar àquilo que verdadeiramente nos repugna e nos ofende.
Acontece que na voragem do multiculturalismo politicamente correto dos últimos anos temos tido tendência a reinterpretar o conceito tolerando (e bem) todas as críticas aos valores tradicionais do ocidente mas tratando com pinças, para não dizer censurando, todas as críticas que sejam minimamente suscetíveis de beliscar qualquer sistema de valores alternativo.
Talvez o ataque ao Charlie Hebdo possa servir-nos como um trágico acordar desse longo e penoso entorpecimento relativista. Talvez nos ajude a recordar que a única coisa verdadeiramente intolerável na vida é a própria intolerância. Seja ela de direita ou de esquerda, seja ela cristã ou islamita.