A economia portuguesa, sabemo-lo agora, não existiu verdadeiramente nos últimos 20 anos. É certo que, a certa altura, tudo parecia concreto, verdadeiro, palpável. Bancos centenários, empresas com ambições globais e uma vontade indómita de dominar o mundo, gestores de nível universal, uma elite empresarial de fazer inveja, fortunas sólidas, sedes imponentes, uma cultura de ostentação, opas e contraopas, sucesso a rodos. Num ápice tudo se esfumou. Do dia para a noite caiu a máscara financeira que escondia uma realidade bem diferente. Sociedades descapitalizadas, estratégias de papel, fortunas com pés de barro, uma rede tentacular de interesses que capturava todo o poder, prestidigitadores ao leme de empresas, burlões e verdadeiros gangsters em mais casos do que ousaria supor-se. Nada era o que parecia ter sido. O sucesso era uma farsa grotesca. O passado nunca existiu.
E o que fica não é, para já, bonito de se ver. Todos somos hoje testemunhas de quão desconcertante é olhar para um passado que nunca verdadeiramente foi. Não é do dia para a noite que se reconstrói uma economia, uma estrutura de poder, muito menos uma mundividência e um quadro mental de valores. E no entanto é essa a tarefa ciclópica que somos chamados a cumprir.
Pelo meu lado, gosto de acreditar que é possível. Que há, pode haver, um lado higiénico em toda esta angustiante derrocada. Que é possível aprender com os erros do passado, fazer da economia muito mais do que uma ilusão financeira, da sociedade um território menos rígido e infinitamente mais plástico, da justiça um lugar concreto, do poder uma aspiração ao alcance de muitos, senão de todos.
Mas eis-me chegado ao ponto onde, digo eu, a porca torce o rabo: agora que estamos obviamente implodidos, vejo sinais demais de que há coisas que mudaram de menos. A justiça continua na sua teimosíssima imobilidade. Como se o início da reconstrução do País não tivesse de começar a fazer-se por aí. Como se fosse possível construir uma qualquer nova ordem sem tirar plenas consequências de tudo o que até aqui nos trouxe. Os bancos, por seu lado, teimam em não despejar dos armários todos os esqueletos que acumularam ao longo das últimas duas décadas. Com a desculpa de não desfear os seus balanços, a economia continua pejada de empresas e empresários zombies que sugam recursos sem nunca verdadeiramente criar riqueza. Finalmente o poder continua demasiado parecido com o que sempre foi. Muda de mãos mas não necessariamente de hábitos. É uma questão de se lhe visitar os corredores. Os tiques são genericamente os do costume, o seu mundo permanece tão paroquial como sempre, os “facilitadores” são rigorosamente os mesmos.
Termino parafraseando, algo preocupado comigo mesmo, um velho cartaz do Bloco: o caminho que percorremos foi demasiado duro para que seja agora sequer concebível que nos fiquemos pela mudança das moscas.