Lamento dizê-lo mas a “detenção” de Ricardo Salgado diz tanto sobre o estado da justiça em Portugal quanto sobre o estado do nosso sistema financeiro. Vale a pena realçar alguns factos, tornados inconvenientes. A operação Monte Branco não nasceu hoje. Desde meados de 2011 que alimenta as páginas dos jornais. As nuvens à volta da venda da Escom não se formaram propriamente numa manhã de julho de 2014. A notícia sobre o alegado presente que Salgado terá recebido do empresário José Guilherme tem barbas. O que parece certo, no entanto, é que, até à semana passada, no plano judicial, nada disto passou de uma montanha incapaz de parir um rato.
E já que estamos nisto, e para memória futura, o silêncio que se seguiu, durante semanas, à primeira notícia publicada pelo Expresso a propósito do BESA foi ensurdecedor. Que eu me lembre (mas como sou suspeito posso estar a ser injusto) não foi recebida com metade do espanto e clamor com que agora se comenta a “detenção” do ex-DDT [“Dono Disto Tudo”]. Nem a comunidade política se espantou, nem a justiça pareceu mexer uma palha, nem a elite dos negócios se chocou, nem muitos dos que agora se demarcam do homem que mandou em Portugal nos últimos 20 anos se indignaram publicamente.
A verdade, verdadinha, é bem mais triste. Salgado parece ter caído às mãos da justiça, a propósito de um caso com anos (e não por causa do escândalo do momento), depois de ter sido abatido na praça pública. Salgado cai às mãos da justiça, depois de ter sido apeado do alto do seu trono de presidente do BES. Salgado passa a chocar a patética elite dos privilégios nacionais, depois de deixar de estar em condições de os distribuir.
Não façam confusões. Não sei, mas não sei mesmo, se Ricardo Salgado é culpado de metade do que o acusam. Do Monte Branco à derrocada do império GES. Se é, merece muito mais do que a sua queda em desgraça. Merece uns anos valentes de cadeia. Por ter lesado inocentes, por ter traído amigos, por ter defraudado depositantes e por ter enganado investidores.
Digo mesmo mais (e não é a primeira vez que o digo): há um lado redentor na ruína de um sistema que terá alimentado, longos anos, uma rede tentacular de favores e prebendas que minou a ordem política e alimentou, artificialmente, uma economia de novos-ricos e dinheiro fácil.
O meu ponto não é esse. O ponto é que tudo isso me indigna muito, mas não me indigna menos do que um sistema de justiça que só se move quando se trata de bater em mortos. Onde andou a justiça estes anos todos? Terá nascido das razões tortuosas do acaso o facto de ter esperado que Salgado caísse da presidência do banco para armar, com pompa e circunstância, uma detenção aviltante, de tão gratuitamente enxovalhante? Ninguém pode afirmar, em consciência, que há aqui muito mais do que uma simples e infeliz coincidência. Mas também não é proibido dizer que é o que parece.
Já não falo dos amigos que eram de ontem e que agora se esfumam à espera da emergência do novo poder. Já não falo dos parceiros de negócio que agora se apressam a retirar do currículo toda a referência a Salgado. Já não falo dos lacaios fidelíssimos que saltaram do barco, na 25.ª hora. Essas são contas privadas que só Ricardo Salgado poderá ajustar. O que, repito, verdadeiramente me indigna é que também a justiça do meu país se mova à velocidade do oportunismo. De fracos está o mundo cheio. Mas são as instituições, a sua força ou a sua fraqueza, a sua respeitabilidade ou a falta desta, a sua dignidade ou a ausência de decoro, que verdadeiramente marcam a fronteira entre a civilização e a simples barbárie, ou, se quiserem que seja mais cândido, a generalizada bandalheira. Já que estamos a chafurdar na lama, não nos limitemos a olhar só para metade do problema.