Era uma ilha ao centro do mundo. Não durante uma época ou um século ou um milénio. Praticamente desde sempre. Ainda hoje, quando já não faz sentido dizer que há centros e periferias no mundo, de vez em quando lá aparece a Sicília na sua velha posição geoestratégica incontornável, como por exemplo, durante a libertação de Itália pelas tropas americanas na II Guerra Mundial; ou nos dias que correm com a crise dos migrantes e as consequências que terá sobre o futuro da Europa. Os impérios, as civilizações, os fluxos culturais e artísticos que arribaram às suas costas fizeram da Sicília um lugar extraordinário do património comum da Humanidade e por esse passado cada siciliano quando nasce traz em si um legado mais rico do que muitas bibliotecas municipais espalhadas por esse mundo fora.
Então, por que raio é a Sicília o berço da máfia? E como é possível tanta violência gratuita, doméstica, passional para deleite das primeiras páginas dos tabloides italianos? E o lixo, que nojo é este? Lixo por todo o lado, amontoado nas bermas e nas esquinas, amarelecido, podre, antigo, lixo que não está ali por causa de uma greve ou uma falha mecânica dos camiões coletores ou pelo desleixo dos funcionários camarários, aquele lixo está ali há anos, é assim, faz parte da paisagem, estraga de propósito a paisagem e a qualidade de vida e a esperança dos sicilianos de um dia colocarem de novo a sua ilha no centro do mundo.
E é nisto que eu penso ao volante do carro alugado, os carros alugados servem para os turistas fugirem aos itinerários formatados pelas entidades e agências da promoção turística, coitadas, devem acordar todos os dias a pensar que a Sicília podia viver dos rendimentos do turismo, os sicilianos podiam ter a vida mais fácil de todos os italianos e afinal este poço negro de máfia, criminalidade e lixo.
A máfia, dizem os sociólogos, nasceu algures no tempo como defesa digna e silenciosa do siciliano contra a opressão dos sucessivos invasores que chegavam para dominar, explorar e oprimir o ilhéu. A máfia era a justiça interina, o código de honra que excluía, desautorizava, ignorava a existência do opressor. Era uma cosa nostra. Depois, deu no que deu. A criminalidade passional, dizem os sociólogos, vem da paixão, da latinidade, dos sentimentos exacerbados de ciúme e machismo e posse, do sangue quente, latino, dessa coisa viscosa e irreprimível que grassa no sul da Europa e no Médio Oriente.
O lixo, não sei o que dizem. Mas ele está lá, como o golpe de navalha ou o jorro de ácido na cara bonita da prometida insubmissa que recusou o noivo arranjado entre famílias. Lixo despejado nos lugares mais visíveis, mais frequentados, mais transitados, lixo que não é protesto nem revolta, é apenas desfiguração, delinquência quotidiana, o mal omnipresente que parece vibrar com mais força nos lugares onde o resto da Humanidade se revê, no património que o resto da Humanidade aponta como exemplo de tudo o que ela, nos séculos, fez de bem.
E quanto fizemos de bem nos séculos na Sicília! Os extraordinários templos gregos de Agrigento e Selinunte, as cidades pré-romanas de Siracusa e Taormina, a herança árabe e normanda de Palermo e Cefalú, o barroco de Noto e Catania, a dimensão mediterrânica das aldeias de Erice e Mozzia, o refúgio perfeito das ilhas de Pantelleria e das Eolie, e a lista seria longa.
Paro o carro no miradouro sobre Castellamare del Golfo, é uma das povoações debruçadas sobre o Mediterrâneo mais encantadoras e pitorescas que eu jamais tenha visto, saio do carro para tirar uma fotografia e evito mesmo a tempo um cocó enorme no meio do miradouro, não é cocó, é merda, é de homem e está ali de propósito, alguém escolheu cagar ali para estragar mais um pouco a minha viagem e desfigurar a beleza de Castellamare e afastar a Sicília mais uns metros do centro do mundo.
Crónica publicada na VISÃO 1256 de 30 de março de 2017