Todas as famílias têm aquele tio inoportuno, que pergunta “então, quando é que nasce a criança?” a uma sobrinha que engordou um bocadinho e gaba os atributos físicos da senhora da papelaria, elogiando-lhe a belíssima prateleira, e jurando depois a pés juntos que se referia ao expositor de dossiers. Estamos, para nosso infortúnio, familiarizados com esse tipo de pessoa. Não estávamos era habituados a ver o tio Alfredo em visitas de Estado. O Presidente da República portuguesa, em visita oficial ao Canadá, destacou o colo de uma jovem, que se fazia acompanhar pela mãe: “A filha ainda apanha uma gripe, já viu bem o decote?”, perguntou Marcelo, que entretanto veio esclarecer que estava apenas preocupado com a possibilidade de a rapariga ficar engripada. O que é estranho é que a frase que antecedeu essa súbita apreensão foi “a filha ainda é mais bonita do que a mãe”, o que, já de si, é uma inconveniência digna de um tio Alfredo e nos remete muito mais para uma conversa de flirt do que de profilaxia. Por outro lado, e numa altura em que o piropo já é considerado crime, Marcelo dá excelentes argumentos a quem precise de se defender: “Quando eu disse à queixosa que lhe fazia um casaquinho de cuspo, foi apenas porque estava frio e eu queria fornecer-lhe um agasalho.”
Marcelo jura a pés juntos que não se trata de sexismo, mas seria mais fácil acreditar nisso se, na próxima cerimónia oficial, perguntasse a um homem: “Tem alguma coisa no bolso ou está contente por me ver?” Fazendo uma retrospectiva, apercebo-me de que o processo de tioalfredização de Marcelo já está em curso há muito tempo, nós é que não levámos suficientemente a sério os primeiros sinais. As danças despropositadas em Moçambique (bem me lembro de quando levámos o tio Alfredo a um resort em Cabo Verde), o exagero de selfies, os gelados Santini enquanto está toda a gente à espera, os cumprimentos demasiado vigorosos a outros chefes de Estado (recorda-me o dia em que o meu tio deslocou o ombro a um ex-colega da tropa, só com umas “palmadinhas” nas costas), a forma como chocalhou o Papa Francisco, o vigor com que beijou cada uma das jogadoras da Selecção Nacional de Futebol, o telefonema em directo para O Programa da Cristina, entre duas reuniões… Não, também não exageremos, isso o meu tio nunca faria. Na pior das hipóteses ligava para aquele passatempo do 760, a ver se lhe saía um bom automóvel, para impressionar as “garinas” (o meu tio diz garinas, e o nosso Presidente é provável que, mais dia menos dia, também diga). Impressionar no sentido de elas ficarem a querer saber mais sobre as motorizações do novo modelo da BMW, claro. Marcelo parece encarar o último mandato como aquele trabalhador saturado do patrão encara as últimas horas na empresa, depois de se ter despedido. Já ninguém pode fazer-lhe nada, não quer saber, vai correr nu pelo escritório! O pior é que, no caso de Marcelo, o escritório é Portugal, e ainda falta muito até 2026.
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