Há dois tipos de pessoas que possuem as habilitações necessárias para compreender a justiça portuguesa: os juristas e os cidadãos que têm filhos pequenos. O resto da população não percebeu porque é que o julgamento de Ricardo Salgado (acusado de três crimes que terão ocorrido em 2011), que ia finalmente começar esta semana, foi adiado outra vez. Mas eu, que sou pai de crianças pequenas, percebi perfeitamente. O procedimento de Salgado e dos seus advogados assemelha-se em tudo aos estratagemas das crianças quando é hora de ir para a cama. Aos 5 anos (não por acaso, a duração de um curso de Direito), as crianças são já minicausídicos especialistas nas mais imaginativas manobras dilatórias. A primeira manobra, equivalente ao requerimento para abertura da instrução, é o clássico “não consigo dormir se não me contares uma história”. Tanto os juízes, no tribunal, como os pais, à cabeceira da cama, são então forçados a ler uma narrativa, interrompidos a cada passo pelos grandes ou pelos pequenos litigantes, com objecções relativamente à história, ao facto de os meritíssimos não estarem a fazer as vozes das personagens ou de, em versões anteriores da mesma história, os meritíssimos a terem contado de outra maneira, sem abreviar certos episódios.
A segunda manobra, a que em linguagem jurídica se chama arguir a incompetência territorial do tribunal, consiste, no caso das crianças, em notificar os pais da forte desconfiança de que há um monstro no armário. Os meritíssimos têm então de avaliar o mérito da queixa e, consoante o resultado dessa deliberação, aceitar ou negar a pretensão de que, nuns casos, o julgamento decorra noutra comarca ou, noutros casos, que o arguido possa dormir na cama dos pais.