Regressava a Lisboa. O meu lugar era numa das filas a meio do avião, à janela. O passageiro que se sentou ao meu lado tinha mais ou menos a minha idade. O espaço acanhado fazia com que parecesse mais alto do que era. Um homem bonito, de olhos azuis e cabelo grisalho. Ainda antes de descolarmos, abriu um bloco de notas e o livro Vamos aprender português! Virei a cabeça no sentido contrário, despedi-me de Roma e peguei no livro que andava a ler.
Já longe da Itália, a voz do comandante com as informações do voo despertou-me do meu dormitar. Regressei aos pensamentos de Gustav von Aschenbach em Veneza, “Pois uma pessoa ama e admira outra pessoa desde que não a possa julgar e o desejo é fruto do conhecimento incompleto”. Olhando de soslaio, apercebi-me de que o meu companheiro de viagem estudava a conjugação do verbo fazer, enredado no pretérito perfeito. Devo ter sorrido involuntariamente quando li a sua resposta a um exercício, Eu, ontem, fazi a lição. É comovente ver um adulto errar de forma tão desprotegida, Eu ontem fiz a lição, corrigi em voz alta. Há dez anos, sentia-me mais ligada aos outros, acreditava que podia ter coisas para lhes dizer, que os outros podiam ter coisas para me dizer, que os outros não me esqueceriam, que não nos esqueceríamos. Era-me, por isso, simples conversar com desconhecidos. Ainda não sei falar português, esforçou-se o estrangeiro, Fala inglês? Ele prosseguiu em inglês, Os verbos portugueses são difíceis, não fazem sentido, queixou-se, Talvez as línguas espelhem os seus falantes, propus divertida. O meu interlocutor apresentou-se, chamava-se Lorenz e era um engenheiro suíço. Tinha de aprender português porque a multinacional para que trabalhava encarregara-o de chefiar a representação em Portugal. Desde então, vivia entre Genebra e o Porto, Fazendo bem as contas, estou mais tempo em aviões e aeroportos do que em qualquer uma das cidades, reconheceu ele. Contou-me que regressava de uma reunião em Roma, e quis saber de onde eu vinha, De uma conferência em Mântua, onde se discutiu se a literatura tem género. Ah, exclamou, E qual foi a conclusão, é rapariga ou rapaz?, rimo-nos. Quando lhe disse que era escritora, o Lorenz confessou que em jovem quisera ser romancista, Não resultou, a minha vida sempre foi monótona, não tinha o que contar nem conseguia inventar nada que valesse a pena. Apontou para o livro que eu mantinha aberto no colo, Acha que Gustav von Aschenbach está apaixonado pelo jovem Tadzio? Discordámos acerca da relação que os unia e fomos saltando de assunto em assunto como velhos amigos. Não gostávamos dos mesmos filmes nem dos mesmos livros e tínhamos ideias diferentes sobre quase tudo. Que bom foi podermos desentender-nos com tanta sinceridade e tão pouca mágoa. São raras as situações em que isso é permitido. E quando acontecem, breves são os instantes em que o completo desprendimento é possível. Estarmos distantes da terra, a lateralidade desconfortável dos corpos a desatrapalhar a frontalidade dos pensamentos, prolongou-nos os tais instantes de completo desprendimento.