Os contactos com o mundo fazem-se tendo a tecnologia como interface e tem sido muito nela que me tenho visto ao espelho. Tem sido nela que tenho fotografado os outros, procurado novos estímulos e encontrado recorrentes constatações.
Foi a ver a minha imagem no ecrã durante uma videochamada de Zoom, que reparei que era quase fevereiro e a árvore de Natal ainda estava montada. Não fosse essa coisa Escheriana de nos vermos enquadrados numa janela, enquanto falamos para dentro de um ecrã, num jogo de espelhos, em que outras janelas se agrupam, com outros rostos em interação cruzada, e não teria tido aquela perfeita imagem de mim. Uma mãe, com ar cansado, com o mesmo camisolão cor-de-rosa e o mesmo rabo de cavalo semidesfeito, tentando manter a concentração numa longa videochamada de fim de tarde, com uma anacrónica árvore de Natal de fundo.
A árvore de um Natal coletivamente muito arrependido, mas que foi muito desejada e celebrada por aqui.
Primeiro, por ter sido uma estreia absoluta. Saí de casa dos meus pais há 20 anos e nunca tinha feito uma árvore de Natal, em nenhuma das casas em que vivi, sozinha ou acompanhada. Foi a maternidade que me devolveu o encanto infantil de montar uma árvore de Natal. Segundo, porque quis o acaso que a nossa árvore fosse igualzinha à da Masha e o Urso, o que resultou num sucesso estrondoso junto do nosso pequeno fã.
Claro que foi também a maternidade que fez a árvore ir passando pelos pingos da chuva até fevereiro, mais precisamente até à videochamada em que a vi no ombro, qual papagaio de pirata, para confirmar a sensação de que tudo em redor tem estado meio desfocado, enquanto me movo a alta velocidade por entre missões, sem tempo para pousar o olhar sobre os móveis.
Ainda assim tenho insistido em fazer cursos online para aproveitar a oportunidade de aprender à distância, desenvolver a minha escrita e sair um pouco da bolha. Quando penso nisso quase me enterneço com a minha própria boa vontade, pois na maioria das aulas estou ensonada e em esforço, tenho pouco tempo para os trabalhos de casa, e quase sempre aproveito as horas de aula para tentar o multitasking, que aliás costuma ter muito boa imprensa, mas é apenas mais um caminho para a exaustão feminina.
Ora foi mais uma vez na janela da videochamada, que me vi rodeada de montinhos de meias, cuecas e roupa de criança, por ter intervindo na aula por impulso, sem me lembrar de que estava a dobrar roupa lavada. A imagem parou em mim, e as pequenas pilhas de roupa interior emolduraram o ecrã. Ali estava eu, com o ar ligeiramente tenso de quem tenta terminar uma tarefa a todo o custo e, ao mesmo tempo, participar numa aula de escrita de não ficção. Era eu na minha condição de pessoa-esforçada, tentando manter a sensação de que a vida continua, apesar de estar fechada em casa e atolada em tarefas domésticas, com o corpo e o espírito batendo continência a todas as missões, como o chinês do circo que faz girar vários pratos ao mesmo tempo.
Foi também nas minhas conversas com amigos, uma por SMS, outra por telefone e a última por WhatsApp, que constatei a omnipresença das letras de canções nas mais banais conversas quotidianas. É que ao mesmo “como estás?” responderam-me com três encolheres de ombros diferentes, em forma de citação:
- “Por vezes forte, coragem de leão, às vezes fraco assim é o coração” (com ironia)
- “Enquanto houver estrada para andar a gente vai continuar” (com esperança)
- “Cá se vai andando com a cabeça entre as orelhas” (com resignação)
Eram as frases de Pedro Abrunhosa, Jorge Palma e Sérgio Godinho, como parte da mobília idiomática que nos decora a sala em que convivemos com os amigos, sobretudo nestes tempos, em que é tão difícil responder a essa pergunta (já que a resposta mais fácil tende a ser falsa, e a verdadeira custaria muito mais carateres do que os que queremos gastar).
(Crónica publicada na VISÃO 1463 de 18 de março)